Nos anos setenta e oitenta, a gente tinha um clube social onde toda a classe média da Barra do Ceará e da periferia se reunia. Era o Clube de Regatas da Barra do Ceará.
No Regatas, como a gente o chamava, havia as tertúlias e quem não era sócio pagava por um ingresso que era vendido na hora do pobre, isto é, à meia-noite.
Às vezes, quando a turma conhecia alguém do conjunto, isto é, da banda que ia tocar, descolava uns ingressos "de grátis" ou como se diz hoje, no 0800.
Num sábado, em que o conjunto do Roberval, tio da Irene (uma amiga nossa da turma), ia tocar no Regata, ele deu seis ingressos pra gente, ou seja, para três casais. Acontece que, na época, as mães não deixavam as filhas saírem sozinhas para festas com os namorados. Assim, com consentimento das namoradas, fomos seis machos para a tertúlia daquele sábado no Regatas, mas com uma coisa condição: a gente só dançaria com meninas conhecidas das nossas namoradas. Enfim, não se dançaria com ninguém!!! Mas quem disse que seis machos, sendo o mais velho com 24 anos, iria passar a noite de braços cruzados?
Assim, naquele sábado, depois de chegar da casa das respectivas namoradas, a gente se encontrou na parada do Nova Assunção e, na maior putaria, fomos ao Regatas.
À tertúlia foi uma merda. O conjunto do Roberval tocava ruim pra caralho e ele, que era vocalista, não sabia porra nenhuma de inglês. Na época tinha um conjunto chamado Pholhas, que fazia sucesso nacionalmente, pois era costume naqueles tempos os cantores cantarem em inglês. O Roberval pra estragar a apresentação resolver cantar um sucesso dos Pholhas chamado "Because I Love You". Quando vieram os primeiros acordes, todo mundo pegou uma menina pra dançar e eis que Roberval disparou:
"Micose I love you".
Quem sabia inglês, como eu que namorava uma estudante do IBEU, caiu na gargalhada, mas quem não sabia continuou dançando nos maiores amassos sob os globos de luz. E haja amasso e haja beijo de língua!!!
Quase duas da madrugada, a gente decidou vir embora. Saimos os seis, a pé, de volta pra casa. Naquele tempo, tinha o corujão (um ônibus que circulava depois de meia-noite), mas passava um na vida e outro na morte. Como a gente conhecia bem a região, tiramos as camisas, as amarramos na cintura e viemos na maior gritaria pela velha pista da Barra.
Quando a gente ia dobrar no posto pra pegar a Praça do Polar, na encruzilhada, havia um despacho que acabara de ser colocado alí. Eram sete facas, tipo peixeira, bem novinhas em semi círculo. Na ponta de cada faca, havia uma garrafa de cachaça e junto de cada garrafa uma carteira de cigarro Minister (cigarro chique nos anos 70). Havia outros coisas, mas a turma só se interessou pela bebida e pelos cigarros, já que todos fumavam e bebiam.
Tonim, o mais gaiato dos meninos, foi logo dizendo:
- Pronto, negada, a gente tem cana e cigarro pro final de semana inteiro.
Deu uma sonora gargalhada e eles começaram a partilha da cachaça e do cigarro. Eu fiquei na minha. Um dos irmãos de minha namorada, o mais velho deles, me olhou e disse:
- Pega a tua, barão.
O irmão mais novo de minha menina e eu ficamos parados. Ele porque não bebia nem fumava e eu por recomendação de minha mãe:
- Quando você encontrar despacho nas 'encruzilhada', deixe lá no lugar dele. Passe direto e nem olhe.
Foi o que fiz. Fechei os olhos e a gente seguiu de volta pra casa.
Quando chegamos na Washington Luiz, o Bar da Castanhola estava aberto e o gaiato do Tonim convidou:
- Negada, vamos tomar essa 'cana' e jogar uma sinuquinha. Tá cedo ainda.
Eu decidi ir para casa:
- Não, negada, eu tô 'bebim' de sono. Vou dormir.
O irmão mais novo de minha namorada disse a mesma coisa e pegou a chave de casa com seu irmão mais velho.
Fomos pra casa e os quatro ficaram jogando sinuca e enchendo o cu de cana.
No domingo à noite, fui à casa de minha namorada.
Ela me recebeu com quatro pedras na mão, mas depois tudo voltou ao normal quando eu contei do Roberval cantando "micose I love you". A gente ria bastante quando o irmão mais velho de minha namorada me disse:
- Ei, barão, vamo aqui. Quero ter um leriado contigo.
Minha menina fez cara de interrogação e eu balancei a cabeça e fui.
- Diga lá, barão, o que houve?
O irmão mais velho de minha garota estava tremendo e disparou:
- Bicho, aconteceu uma tragédia ontem quando vocês saíram.
- O que foi, bicho, tu tá me deixando agoniado.
Ele, então, foi narrando detalhadamente:
"Macho, a gente tava rindo, biritando e, de repente, um negão entrou e foi no balcão e pediu uma cana. Tonim que tava jogando com Maurílio, falou para o negão:
- Ei, cumpade, toma uma dose aqui com nós. Tem cana aqui pra dar e vender.
O negão, macho, de quase dois 'metro' respondeu pro Tonim:
- Mete tua cana no cu.
O Tonim, tu sabe, é todo marrudo porque faz caratê e aí não comeu partido pra negão:
- Respeito é bom e conserva os dente, cumpade.
O negão, macho, tomou a dose que ele pediu ao dono do bar e repetiu pro Tonim:
- Já falei pra tu, mete tua cachaça no cu, porra.
Tonim pegou o taco de sinuca e falou:
- Que porra é essa, negão, quer sair nos pau comigo?
O negão parecia sem sentimento, macho, e respondeu:
- Corre pra 'dento', fi de puta.
Tonim arremessou o taco de sinuca no negão. Ora, mah, o negão tomou o taco do Tonim e quebrou como se fosse um cabo véi de vassoura.
O resto da turma se meteu pra separar os dois que já ameaçavam se pegar, mas, de repente, uma coisa faiscou e a gente ouviu um grito.
Macho, o negão deu uma furada no Tonim, que se encostou no balcão.
Pulando por cima da mesa de sinuca feito um gato, o negão ameaçava todo mundo com a peixeira e voou novamente em cima do Tonim e haja furada e haja grito.
Duma hora pra outra, o nego pulou a sinuca e, sempre com a faca na mão, gritou bem alto:
- Isso é pra ele aprender a não mexer mais com o que não é dele.
E na saída ele completou:
- Nunca mexa, nunca zombe com quem passa na estrada, recado de Seu Sete Facadas.
Macho, o Tonim a gente levou o Tonim pro hospital ontem de madrugada. Ele ficou entre a vida e a morte no Frotão. A gente vai lá amanhã, com a família, pra saber se ele melhorou. Tu vai mais nós?
Vou sim, vou sim, respondi".
Voltei pra perto de minha namorada e ele perguntava espantada porque eu chorava tanto.
Eu já sabia o final daquela história.
Cheguei em casa e perguntei a minha mãe quais seriam as cenas do próximo capítulo. Ela me olhou, foi nas coisas dela e trouxe uma quenga de côco cheia de um líquido escuro e me ordenou:
- Vá tomar um banho agora e depois tome esse banho do pescoço pra baixo.
- Ele vai sobreviver, mãe?
Ele me empurrou para o banheiro que ficava no fundo do quintal e cantou bem alto:
"Oh nunca mexa, nunca zombe com que passa na estrada... Agô pra meu fi, meu pai... agô, agô*"Tonim morreu sete dias depois e no seu corpo foram contadas sete facadas.
Fortaleza, 07 de março de 2020.
*Agô, palavra yorubá usada nas religiões de matriz africana que significa "piedade", "perdão" para quem cometeu uma falta.