Pigmaleão

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Ricardo era um homem bonito de rosto, porém ao longo da adolescência para a juventude descuidou-se e ao 20 anos pesava mais de 120 quilos. Ricardo foi meu colega de francês na Casa de Cultura Francesa, da UFC.

Desde os quatorze anos que ele namorava com Michelle que, ao contrário dele, se cuidava, tinha uma alimentação balanceada e sempre praticara esportes. Ricardo fora, até os 12 anos, atleta de judô, mas o fascínio pelos estudos afastara-o de tudo, exceto de Michelle e da comida. Ele comia em exagero e seu sedentarismo era algo patológico.

Ricardo entrou para a faculdade de Engenharia Mecânica e Michelle foi cursar medicina. Numa época em que todos os jovens, mesmo estudantes, procuram se divertir nos finais de semana, Ricardo aproveitava para estudar e quando lembrava ia, aos sábados ou aos domingos, na casa de Michelle. E assim se passaram todos os anos de faculdade dos dois.

Quando Ricardo se formou, passou numa seleção para um doutorado na Dinamarca. Todo feliz, o jovem engenheiro foi procurar Michelle para oficializarem o noivado e o casamento, para antes de sua viagem para a Dinamarca.

Ele conversava muito comigo e num certo dia perguntei a ele:

- E, então, meu amigo Ricardo, como está o noivado?

Ele fez cara de desanimado e com seus quase 130 quilos respondeu:

- Tá difícil, cara. A mulher anda fria, estranha, mal me beija. Quis fazer amor com ela e sabe o que ela me disse?

Eu ficava feliz com a confiança que ele depositava em mim.

- O que ela disse, Ricardo? Indaguei curioso.

Ele baixou a cabeça e com lágrimas nos olhos respondeu:

- Ela disse: só se for pra eu ser esmagada por ti.

Paramos o papo naquele instante, pois o resto da turma estava chegando. Os demais dias da semana, Ricardo ia às aulas apenas para ocupar espaço e se empanturrar de comida na cantina da Casa de Cultura.

Estava perto da viagem de Ricardo para a Dinamarca e essa data seria logo após nossa formatura no Francês. Antes disse ele me convidou para irmos tomar umas na Pracinha do Benfica.

Enquanto tomávamos a cerveja, ele só chorava. Eu já estava desesperado porque ele não dizia nada e a hora estava passando e eu tinha que ir pegar meu ônibus. Ele, enfim, me disse:

- Se acalme, homem, que vou lhe deixar em casa, apenas me escute.

E Ricardo começou: através do próprio irmão de Michelle, ele descobriu que fazia três anos que ela namorava, às escondidas, com Emmanuel. Emmanuel fora colega dela no curso de Medicina e, ao contrário de Ricardo, sempre fora um rato de academia. Pelo fato de ter uma família de posses, Emmanuel tinha uma academia particular em sua própria casa.

Quando Ricardo descobriu os dois juntos e foi perguntar à Michelle porque ela agira com ele daquela maneira tão torpe, ela respondeu olhando-lhe na cara:

- Se olhe, Ricardo, você acha que uma mulher do meu porte iria perder meu tempo com uma baleia que nem você? Você não tem um corpo, mas uma bola de gorduraque, felizmente, ainda te mantém vivo, mas a qualquer hora um infarto pode acabar com você.

Ricardo não disse mais nada. Chorou apenas e chorou muito. Até aquela noite, eu não tinha visto um homem chorar tanto. Como prometido, ele veio me deixar em casa e uma semana depois ele partiu para seu doutorado na Dinamarca.

Cinco anos depois, estava eu na Casa de Cultura Britânica, da UFC, onde estava concluindo meu inglês. Naquela tarde, quando cheguei à cantina para tomar o velho café e fumar um costumeiro cigarro, o atendente me disse:

- Tem um rapaz alto, musculoso te procurando.

Achei estranho e fiquei curioso porque pensei que podia ser algum novo aluno particular. Indaguei ao atendente:

- Ele falou se volta?

O rapazinho da cantina, magrelo que nem eu, falou:

- Ele tá lá, naquela última mesa do canto, com aquela loura.

Fui na direção que o atendente me indicara e qual foi o meu espanto ao reconhecer meu amigo Ricardo, do Francês, aquele mesmo que partira do Ceará pesando uns 130 quilos.

Ricardo tinha se transformado numa modelo. Tinha o corpo esculpido e a musculatura parecia de pedra. Muito educado, ele me apresentou a loura que estava com ele:

- Essa é Ingrid, minha esposa.

A dinamarquesa, num português impecável, falou ao apertar minha mão:

- Ricardo sempre me falou de você. Disse que você foi o amigo que sempre segurava as barras dele.

Fiquei feliz e Ricardo me contou sua epopeia para se tornar uma escultura grega. Disse-me que ao chegar à Dinamarca dedicou-se à prática da musculação e natação e auxiliado por Ingrid, que era sua instrutora, conseguiu transformar sua massa gorda em musculatura. Em suma: Ingrid fora a Pigmaleão do jovem doutorando brasileiro em terras vikings.

Quando a ex, Michelle, ficou maravilhada ao reencontrar Ricardo com aquela forma física. Como ainda estava solteira, tentou se reaproximar do velho namorado da adolescência e ele, polidamente, respondeu:

- Se olhe, Michelle, você acha que um homem do meu porte iria perder meu tempo com uma balzaquiana(*)que nem você? Você tem um corpo lindo demais para uma mente tão pequena que, felizmente, ainda te mantém viva, mas envelhecendo assustadoramente.

E Ricardo me deu um forte abraço e dois meses depois voltou para sua nova terra, a Dinamarca, de onde se tornou cidadão naturalizado.

E eu sempre me lembro daquela música: a vida tem dessas coisas
Olhe só nos dois aqui...

Fortaleza, 19 de março de 2020.

(*) Balzaquiana: termo usado para designar uma mulher de trinta anos.



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