Não conte nada ao papai

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— Jennie Kim
(8 de março de 1995 - 30 dias antes)








"Nossas crianças estão morrendo! O demônio está à espreita! Crianças estão matando, crianças estão em perigo!"

Jennie encarou, entediada, a pregação ininterrupta do pai na televisão. Alguém na casa havia gravado o culto em cima da fita de um filme do Arnold Schwarzenegger, e às vezes, alguma frase do Exterminador do Futuro se sobrepunha aos sermões semanais.

— Seu pai tem sábias palavras — disse a senhora, trazendo-lhe uma caneca com alguma mistura de leite com algo doce demais, "crianças" ela poderia pensar, "gostam de coisas doces".

Jennie odiava "coisas doces" e odiava como Huimang Hill gostava de chamá-los de "crianças". Todos tinham dezessete ou dezoito anos, já fizeram coisas que os pais com certeza fizeram quando eram jovens, mas a palavra maldita ainda os faziam ter que se encaixar no conceito, se tornavam adolescentes inconsequentes, maiores de idade só na identidade, irresponsáveis por categoria.

— Dona Louise, eu não quero incomodar, mas Rosé vai demorar? — Jennie tentou dizer docemente, arregalando os olhos para soar infantil. — Quer dizer... ela me pediu para vir...

— Não se preocupe, querida. Tome o seu cappuccino, Rosé está chegando do culto de jovens agora mesmo. — A senhora bagunçou os cabelos de Jennie.

Odiava que mexessem nos seus cabelos, pois era uma luta mantê-los minimamente comportados. Na maior parte do tempo, pareciam ter vida própria e ali, estavam recém lavados. Jennie passou a manhã toda ocupando seu tempo com eles para chegar exatamente no horário marcado por Rosé, mas, quando o ponteiro do relógio marcou nove horas, já estava devidamente vestida mesmo que Rosé chegasse do culto de jovens às onze horas.

Jennie apertou a caneca com mais força, os nódulos dos dedos estavam pálidos. Ela se sentou em uma das cadeiras da cozinha branca, como tudo naquela casa: branco, branco e grande demais para uma família tão pequena. As paredes eram velhas, camadas e mais camadas de tinta até chegar aquele branco, como Rosé e a mãe. Elas fizeram tanto esforço para parecerem perfeitas que soavam falsas, prestes a quebrar se alguém puxar a casquinha.

A aparência era a única passível de preocupação em Huimang Hill.

A senhora tinha os cabelos ruivos em rolinhos na cabeça, um vestidinho bem passado coberto por um avental e sorria para Jennie ao tirar o bolo do forno. As mães daquela cidade eram xerocadas também, pois se mudasse a cor do cabelo daquela senhora poderia chamá-la de "mamãe."

Jennie levou os olhos à porta, Rosé havia chegado com as bochechas coradas pela caminhada da igreja até a casa.

— Mamãe, obrigada por receber Jennie! — Ela saltitou até a senhora, dando-lhe um beijo nas bochechas flácidas. A saia voava pelo vento fresco e os botões da camisa estavam com algumas casas abertas, o pano amassado e mal enfiado dentro da saia poderia explicar o pequeno atraso de Rosé.

Jennie quis vomitar.

— Que tal conversarmos lá em cima? — propôs.

Não esperou uma resposta dela, apenas largou a caneca intocável na mesa e seguiu para as escadas.

Jennie nunca pisou lá e não esperava o fazer tão cedo, mas sabia cada canto daquela casa, pois como as mães, as casas de alvenaria eram do mesmo molde: corredor estreito e três quartos no segundo andar. A suíte costumava ser dos pais, o segundo quarto do primogênito — já que era o mais espaçoso e com vista para a entrada principal —, o resto, dependendo da família, era repositório de materiais desnecessários ou o quarto do segundo filho. Na casa de Jennie, eram guardados santinhos, cadeiras da igreja e roupas do irmão morto.

Não conte nada a ninguémOnde histórias criam vida. Descubra agora