Não conte nada a Jennie

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(15 de março de 1995 - 5 dias antes)

— Lisa Manoban




Jennie dormia, serena.

Lisa a observava ali, deitada, e era fácil associar a antiga Jennie a aquela. Os cabelos já começavam a crescer, a coloração natural da pele voltava e ela ganhava peso. As cicatrizes e feridas pelo corpo ainda manchavam o que era intocado, mas um vigor novo aparecia e os ossos não estavam tão protuberantes como antes. Lisa poderia ter esperança que dias melhores chegassem.

Uma brisa fria adentrava o pequeno quarto do trailer, devido a isso, se levantou para fechar a janela, cobrindo as pernas desnudas de Jennie com um cobertor mais grosso.

Queria saber o que ela achava dali, do remexer leve que o trailer fazia toda vez que alguém andava, do espaço diminuto de tudo, desde a cama até os cômodos. Queria saber se ela sentia falta da sua imponente casa, do quarto grande e bem arejado, das paredes pintadas de branco e da penteadeira cheia de cremes, do guarda roupa lotado de roupas e lençóis macios, se ali, o barulho dos caminhões passando pela rodovia de madrugava a assustava, se ela chorava baixinho em algum canto para que Lisa não se sentisse mal... soltou um longo suspiro, beijando a testa de Jennie ao sair da cama. Vestiu os jeans, calçou um all stars que descolava a sola e, ainda vestindo a blusa de pijama, rumou para a noite deserta, longe dos traumas e do clima pesado que irradiava do trailer.

A estrada era sempre bem-vinda, ela podia deitar no concreto e esperar que as alternativas melhorassem, que tudo se clareasse com o nascer do sol, mas acabou por tomar o rumo contrário. Cruzou os braços para espantar o frio e seguiu para o centro de Huimang Hill, para as casas bonitas e os jardins bem cuidados.

Iria ver Jisoo.

Lisa repetiu o comando novamente para seus pés ouvirem, ver Jisoo, era o que queria. A Kim poderia estar acordada mesmo que as chances sejam mínimas, quem sabe? Se Lisa não a encontrasse desperta voltaria para casa, voltaria para Jennie.

Chegou à rua do comércio, a mais movimentada da cidade, mas que às quatro da manhã parecia abandonada, com as lojas fechadas e os postes projetando uma luz amarelada. Era como se a cidade a pertencesse, como se tivesse nascido ali. Lisa poderia fechar os olhos e se imaginar uma cidadã de Huimang Hill, merecedora de algo pelo menos uma vez na vida.

Andou até a porta de uma loja, pegando a contragosto um panfleto colado com os dizeres "Festa de boas-vindas escolares!" Em caixa alta.

Tanta coisa aconteceu em tão pouco tempo que a escola parecia um futuro muito distante agora.

Os pés de Lisa não a obedeceram, como previsto, mas ela só percebeu quando parou na frente da mansão do prefeito, sentindo-se pequena e indefesa comparada aquela casa imponente.

— Ei, criança! — O porteiro a chamou de longe, com a voz quebradiça. Todos tinham medo de garotas como ela andando sozinhas de madrugada. — O que faz aqui?

Lisa pensou em ir embora, dar meia volta e fingir ser um fantasma, uma aparição que logo o senhor esqueceria. Talvez ele culpasse o sono ou uma lenda local, mas no fim, ela andou até o portão da mansão.

— Boa noite, eu gostaria de ver o Kai — sorriu, educada.

O porteiro riu, como se fosse uma piada.

— Você? Ver o filho do prefeito?

Lisa se aproximou da guarita e o sorriso do porteiro foi embora.

— Algum problema? — perguntou ela.

— Nenhum. — Ele engoliu o seco. — Mas o senhorzinho não está acordado a essa hora.

Não conte nada a ninguémOnde histórias criam vida. Descubra agora