Não conte nada a chuva

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— Kim Jisoo
(9 de março de 1995 - 29 dias antes)






Jisoo amava Rosé.

Era biológico, inevitável, necessário, além do seu controle.

Era possível amar Rosé e, ainda assim, entender que ela arruinaria a sua vida.

Era possível amar Rosé no escuro, os cabelos fazendo leve cócegas na ponta do seu ouvido e os lábios molhados no breu, carregados de palavras sujas. "Não conte nada a mamãe, Jisoo" Rosé sussurrava com um sorriso no rosto.

As únicas que sabiam, além delas, eram as paredes rosa e os ursinhos de pelúcia jogados no chão; o lençol de alguma princesa da Disney que acabava sujo de gozo e saliva, suor e mentiras. Eram como Jisoo, conseguiam guardar um bom segredo se Rosé pedisse.

Era possível amar Rosé e, ainda assim, querer matá-la.

Vê-la implorar para devolver-lhe a vida e mesmo assim não ser misericordiosa o suficiente para fazer, contemplar as bochechas perdendo a cor, os olhos se fechando devagarinho, e então, ela seria só sua. Não dividiria a sua deusa com mais ninguém.

Era possível amar Rosé e, ainda sim, odiá-la. Ela transformou Jisoo em uma pessoa detestável, reprimida, sempre às ordens, sempre esperando ser fodida.

Esse tipo de amor existia, pois era desse modo que Jisoo amava Rosé.

Jisoo queria gritar, tudo o que mais queria era gritar.

Porém, pretendo parar por aqui, porque não quero contar sobre Jisoo e Rosé, e sim, sobre Jisoo, Kim Jisoo, pretendo contar um pouco mais sobre a garota que ninguém quer saber. Vou desgrudar Jisoo de Rosé como se faz com um carrapato bastante persistente.

Jisoo foi criada para não demonstrar raiva, rancor ou qualquer que fosse o sentimento que meninas direitas não deveriam conhecer. Ela sempre teve tudo, mas sempre algo faltava, o que era? Os pais a planejaram, ela nasceu em um berço rosa, em um quarto decorado somente para ela. Não importava se as contas se acumulassem no balcão da cozinha, que sua mãe só conseguisse dormir depois de uma grande dose de ansiolíticos ou que seu pai encarasse suas pernas de uma forma que pais não devem encarar suas filhas. Nada disso era relevante. Jisoo foi criada para ser uma fachada, a sorrir e andar com saias abaixo dos joelhos, prender os cabelos num rabo de cavalo, passar blush nas bochechas e creme de cacau nos lábios.

Jisoo foi ensinada a tirar boas notas, mas não tão boas — os garotos não gostam de garotas inteligentes — e ser muito difícil, mas nem tão difícil para ficar para a titia. Ela se casaria depois de se formar no ensino médio, teria filhos e um matrimônio de fachada como sua mãe tinha.

Mas algo não planejado acontecia, Jisoo começava a se rebelar, aos poucos, porém em grandes passos.

Huimang Hill amanheceu abafada naquele dia, bolsões de nuvens carregadas de chuvas prometia um temporal de verão intenso. O vento fazia farfalhar as folhas secas e terra batida, interrompendo o jogo de bingo dos senhores de meia idade na praça da cidade. Jisoo olhava para a infelicidade deles pelo canto do olho, como um cãozinho preso em uma redoma de vidro, vendo o ir e vir das pessoas na rua. Ela estava presa, mas não em uma redoma de vidro, e sim, em uma igreja.

Fileiras de cadeiras de madeira ocupavam o lugar, Jisoo e os pais estavam sentados na última, pois chegaram tarde ao culto e perderam os lugares iniciais. O pastor Tobias era um homem gordo que suava bastante, alguns fiapos restantes de cabelo estavam embebidos a gel no topo da cabeça e uma pizza se formava debaixo da camisa de botões. Ele falava e falava, a voz grossa e indolente afinando no fim, mas Jisoo não conseguia interpretar, estava com tanto tédio que sua mente desistiu de pensar.

Não conte nada a ninguémOnde histórias criam vida. Descubra agora