(Abril de 1995)Todos nós temos segredos, dos mais diversos tipos possíveis.
Nem que sejam segredos bobos, como daquela vez em que você foi em uma festa escondida dizendo a sua mãe que estava na casa de uma amiga, ou quem sabe, da vez em que você, sem querer, quebrou algo de importante e colocou a culpa no cachorro. Segredos assim são normais, naturais e às vezes, te livram de castigos inoportunos. Mas em Huimang Hill, as coisas funcionam de outra maneira. Aqui os homens de família sonegam impostos e dormem com a vizinha, as crianças vestem seus uniformes impecáveis durante o dia e, à noite, roubam o carro dos pais e rumam para as corridas ilegais na rota 87, na saída da cidade. Os segredos eram maquiados com jardins bonitos e praças bem cuidadas, sorrisos ternos e cochichos ao anoitecer, e ninguém de fora poderia imaginar que aquela cidade no interior do país, esquecida no mapa e com tão poucos habitantes, pudesse esconder tantas mentiras.
Alguns dizem que os costumes conservadores foram os culpados pela imaculada Huimang Hill ser tão fechada. Segundo as lendas, nem mesmo os nativos gostavam daquele pedaço de terra, sendo assim, coube aos colonizadores darem um ar bonito a cidade, ensinar os primeiros moradores o jeito educado de se portar, de agir, de vestir, e os moradores passaram os ensinamentos aos filhos, que ensinaram aos netos, bisnetos e tudo ficou assim, a cidade requintada e centenária, tradicional e exemplar.
Porém, voltando ao ponto inicial dessa história, segredos são complicados. Por mais que você os esconda debaixo do tapete, que reze para que ninguém descubra ou não conte nada para ninguém, ainda sim, eles emergem. Era como os monstros escondidos no pântano que rodea Huimang Hill, não falar deles os alimenta.
E, naquela manhã de Abril, quando as flores brotavam pelo começo da primavera, as donas de casa levavam os filhos de volta às aulas depois de um verão intenso e Michael Jackson era febre nas rádios e fitas K7, o segredo mais macabro de Huimang Hill emergiu no pântano. Emergiu em forma do corpo decomposto da garota de cabelos cor de fogo, que finalmente depois de semanas desaparecida, havia sido encontrada — infelizmente para uns e felizmente para outros: morta.
Era a comoção que a cidade esperava para entrar nos noticiários locais, para ter um pouco de relevância que a minoria nunca antes viram na vida. Os mais velhos lamentavam que a garota tivesse partido tão cedo, os pais de família temiam pelos filhos. Os mais céticos esperavam o próximo corpo, suspeitando dos vizinhos como se eles fossem os assassinos em série que viam na TV, mas o que todos tinham em comum, o que aquela cidade mais temia em seu íntimo, era que aquele assassinato sujasse a imagem de anos construída em mentiras mal contadas e segredos omitidos.
Huimang Hill estava em caos ou somente aqueles que acreditavam na pueril inocência da garota ruiva de bochechas adoráveis, com um nome tão gracioso que seria quase impossível — nota-se o quase —, fazer mal a uma mosca.
— Há algo de errado com as nossas crianças! — proclamou o prefeito, alto e claro, durante a cerimônia do enterro de Rosé, que mais parecia um evento, uma coletiva de imprensa, o anúncio de algo grandioso.
As margaridas enchiam a catedral da igreja, trazendo o costumeiro odor de falsa esperança para eles. Todos da cidade largaram suas vidas miseráveis para ver um caixão fechado e chorar tudo que fingiram na frente do espelho, mais de desapontamento por não ver um defunto apodrecido, do que por tristeza. E, quando o prefeito dizia "crianças" ele se referia a elas.
Jennie lançou ao prefeito um sorriso de escárnio, como uma ironia a "crianças" que saiu da boca dele.
O prefeito Hajun era um dos amigos do seu pai, o pastor Tobias Kim. Ele ia aos cultos todos os domingos com o filho e a esposa devotada, recatada e do lar, mas aos finais de semana batia na porta do pastor para pedir "uma parte" do dinheiro das oferendas da igreja, para não dizer a "lavagem de dinheiro" que o pastor e o senhor prefeito participavam. Mais tarde, naquele mesmo dia, a última parada era no trailer da prostituta local, Lawan.
Jennie sentia frio nas pernas, usava apenas um short jeans e uma camisa do namorado, mas o começo de Abril costumava ser marcado por um frio incômodo em Huimang Hill. Ela também sentia aquela sensação estranha na boca do estômago, aquela que precedia maus bocados, e apertou a mão do namorado com mais força. Os olhos de Kai estavam fixos no altar da igreja, o castanho tempestuoso exalando uma preocupação palpável.
Todos eles estavam preocupados, em maior ou menor escala, mas preocupados. Ela se ajeitou no banco e passou a mão pela cabeça, com algumas mechas nascendo aqui e ali, e notou o olhar de Lisa, desviando dele o mais rápido que pôde.
— E por mais que essa perda seja muito dolorosa para todos nós... — continuava o prefeito —, vamos transformar toda essa energia em um só foco: procurar o assassino de Park Rosé!
Ele deu uma longa pausa na fala, virando-se para encarar a foto da garota morta emoldurada, ao lado. Os cabelos ruivos de Rosé balançavam ao vento e um sorriso triunfal reinava nos lábios cheinhos. Mesmo morta ela parecia ter vencido, mesmo que todos vissem aquela foto e pensassem na doce e pura garota, com os olhos cheios d'água imaginando o futuro brilhante que ela teria pela frente, Rosé ainda parecia estar se gabando e rindo da cara de todos eles.
Jennie forçou-se a tirar os olhos do retrato perturbador e se voltou a Jisoo, na primeira fileira. A menina ao menos piscava, como se a qualquer momento aquela foto na moldura fosse ganhar vida, como se Rosé fosse sair dali e mandá-la parar de chorar. Era visível que Jisoo era medíocre demais para viver sem os mandamentos de Rosé, por isso tinha as mãos em prece, o terço amarrado no pescoço, rezando para que alguém trouxesse a sua deusa de volta.
Jennie riu amarga, tão focada em zombar da viúva que mal percebeu que a pausa do prefeito durou mais que o esperado.
Um chiado no microfone fez todos se assustarem, reformulando essa frase, fez a única distraída se assustar. Jennie encarou o palanque com as sobrancelhas juntas, observando o delegado abaixar o tripé do microfone até que ficasse no seu tamanho vergonhoso, e daquela forma tosca de xerife de filme "Bang Bang" tirou o palito da boca, jogando-o no chão sem displicência alguma.
— Kim Jisoo, Lisa Manoban e Jennie Kim estão acusadas, oficialmente, do assassinato e ocultação de cadáver da jovem Park Rosé.
Ele simplesmente disse, como se anunciasse as festividades do dia das crianças.
Jennie engoliu um arfar, surpresa, e sentiu a mão de Kai apertar tão intensamente a sua que poderia quebrá-la. O olhar deles se encontraram por um segundo que pareceu horas, e a partir disso, ela percebeu as micro expressões de desespero e preocupação estampadas no rosto do namorado. As suas eram parecidas, supôs.
O banco onde estavam sentados se esvaziou e a igreja inteira a queimava com os olhos, como se ela fosse uma doença contagiosa, passível de transmissão pelo ar. Havia recebido atenção o suficiente por ser a reaparecida filha do pastor, mas agora, acusada de assassinato? Era a cereja do bolo para ser enxotada de vez. Nada de cordialidade fingida para Jennie, não mais. Antes que pudesse reformular o que o delegado falou, viu Lisa sendo algemada a duas cadeiras de distância. A devota Jisoo esperneava como se tivessem decretado a sua sentença de morte e a própria Jennie foi escoltada para longe, por um fiel da igreja.
Ah, os segredos! É esse o tema dessa história. Os segredos bem escondidos de Huimang Hill, que escorriam pelas beiradas, que eram ditos nas entrelinhas, que circulavam pela cidade antes mesmo dela se tornar esse recanto esquecido. A pequena Huimang Hill, onde os homens de família sonegavam impostos e dormiam com as vizinhas, as crianças roubavam o carro dos pais para irem a corridas ilegais... e meninas bonitas eram mortas e seus corpos ocultados no pântano da cidade.
Como eu disse, segredos sempre emergem, de uma forma ou de outra, e a morte de Rosé foi o ponto de virada para que tudo tivesse seu fim — ou começo, segundo os mais otimistas. Porém, não pense que sabe tudo o que essa cidade esconde, tudo o que essas garotas escondem. Mistérios normalmente tem uma origem, um ponto inicial, e essa história não começa aqui, caro leitor. Antes disso, vocês precisam entender essas garotas, suas motivações, medos, erros e tudo o que elas fizeram para que a morte de Rosé fosse algo inevitável.
Agora, acho que estão se perguntando quem sou eu e porque estou narrando a vida de um bando de adolescentes e a morte prematura de uma delas, porque, bem, eu sou uma delas.
Mas esse é um segredo que vocês não estão prontos para saber ainda.
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Não conte nada a ninguém
أدب الهواة(CONCLUÍDA) Em Huimang Hill nunca faz calor demais ou frio demais. Não há problemas em Huimang Hill, tudo é ornamentado com orquídeas, sol, felicidade e bons modos. Os pais de família são homens benevolentes, as mães são submissas e sorridentes, os...