Não conte nada aos mortos

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(24 de março de 1995 - 14 dias antes)

— Jennie Kim








A viagem durou uma noite.

As únicas coisas que Jennie pôde ver eram árvores e barro.

Choveu durante todo o caminho, o tempo ficou úmido e o pneu do carro derrapava pelo chão de pedregulhos. Jennie queria enforcar o pai com o cadarço do tênis ou pular para o banco da frente e pegar o volante das mãos dele, mas nada disso funcionaria de fato, ela sabia que tentar era um ato grandioso demais para os seus pensamentos covardes.

Quando finalmente chegaram, o medo a fez chorar lágrimas vergonhosas e a soltar murmúrios incompreensíveis. Implorou ao pai para não deixá-la ali, naquela redoma de concreto que mais parecia uma prisão de segurança máxima, com redes de eletrochoque nos muros altos, funcionários mal encarados e uniformes de macacão cinza. Ali era o lugar para o qual levavam gente para nunca mais voltar. Mas ele não recuou e Jennie recuou demais — obrigada a recuar, na verdade — até passar para dentro do portão.

"O retiro é bom com quem é bom com ele" o senhor branco disse.

Ele era importante, era o único que não usava os macacões que todos os outros funcionários e internos usavam. Pinicava pelo material sintético barato e não absorvia em nada a umidade do lugar e as lágrimas que escorriam ininterruptas pelas bochechas de Jennie. Ele foi passando ao lado de cada uma delas, na roda que fizeram com as recém chegadas. Todas pareciam irmãs azaradas. Carregavam o mesmo olhar desolado, os narizes vermelhos por chorar a manhã toda e a pele começando a descascar pelo tempo que esperaram no sol até serem recolhidas para dentro daquela sala. Eram garotas da mesma idade aproximadamente, com famílias obcecadas demais, que agora encaravam o fim da linha com seus uniformes cinzas bolorentos e seus cabelos cortados até que não sobrasse muita coisa além de um corte militar.

Jennie passou as mãos pela cabeça, as mechas que antes desciam como uma cascata sem fim pelas costas não estavam mais lá, mas se fechasse os olhos ainda ouviria o barulho da máquina, veria os fios no chão, um amontoado castanho que fazia tão parte dela como um braço ou uma perna. Havia doído. Faltava uma parte dela ali.

Foi a primeira coisa que o Retiro tirou de si, a sanidade foi a última e mais dolorosa das perdas.

Ali não havia espelhos, mas se houvesse ela sentiria medo de olhar seu reflexo. Não sentia falta de um amontoado de células mortas, mas sim, do que elas representavam, simbolizava as mãos macias da mãe fazendo trancinhas para levá-la à igreja, o tom castanho claro e os fios rebeldes que eram iguais aos do irmão. Simbolizava Kai, que sempre puxava seus cabelos para irritá-la quando eram crianças, por não saber chamar atenção de uma garota se não fosse daquele modo, e Lisa, que os agarrava entre os dedos para guiá-la durante o sexo.

O velho continuou andando em círculo, numa felicidade mórbida por vê-las tão frágeis.

— Se vocês cumprirem com todas as sessões, confessarem seus pecados e agirem como as boas garotas que eu sei que vocês são... — Ele sorriu, o típico sorriso de um senhorzinho bondoso demais para levantar suspeitas. — Poderão sair daqui na paz do senhor, amém?

Ninguém respondeu.

Depois de dias presas atrás das paredes mal acabadas daquele lugar, Jennie aprendeu algumas coisas. O Retiro parecia um presídio porque realmente era um, estava presa por um crime nos escritos bíblicos. Ela precisava obedecer a regras de um lugar que não era atualizado há pelo menos mil anos, ninguém ao menos os contou que estavam vivendo depois de cristo, não antes dele. As luzes eram apagadas às oito horas e, de alguma forma, eles acreditavam que curariam perversões mandando-as lavar privadas, varrer, e esfregar os pequenos azulejos que cobriam o pátio com uma escova de dentes.

Não conte nada a ninguémOnde histórias criam vida. Descubra agora