Não conte nada ao seu passado

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— Lisa Manoban





Antes dessa cidade maldita entrar no caminho de Lisa, antes de Kai ou Jennie, antes de Rosé e Jisoo e antes de ter sido extraviada por um assassinato, Lisa morou em uma casa de verdade. Nada de trailers, motéis, garagens... Ela teve uma cama onde se deitava durante a noite e, quando acordava pela manhã, estava no mesmo lugar que dormiu, a paisagem era a mesma: fixa, segura e familiar. Isso fez com que a pequena se apegasse à rotina, algo que nunca teve nos seus poucos anos de vida. Improvisar fora a primeira coisa que aprendeu antes mesmo de falar.

Enquanto as crianças corriam, chorando até suas mães depois de cair e machucar, Lisa se levantava e procurava por conta própria uma forma de estancar o ferimento. Nunca poderia contar com Lawan para aquele tipo de coisa ou qualquer outra coisa que não fosse estritamente necessária, e ela nunca culpou a mãe por isso, por não ser uma mulher "normal", casada e do lar.

As circunstâncias nunca foram as melhores, elas não tiveram o básico para que formassem uma família, para que vivessem dignamente. Eram duas mulheres pobres largadas à margem de todo lugar que pisavam.

Às vezes, as pessoas não nasciam com sorte.

Lawan estampava sombras do que um dia foi, um rosto muito parecido com o que Lisa via refletido no espelho, e o olhar enviesado que recebia da mãe quando o álcool subia era o resquício de rancor por ter perdido a juventude tão rápido, por Lisa ter tirado tudo dela, sua jovialidade e as chances de ser alguém diferente. Lawan era cercada de tormentos tão reais que os únicos que a ajudavam era o cigarro e o álcool, e ela chorava constantemente, ainda mais alto na companhia de um cliente. Os gemidos dos homens se misturavam ao choro dela e chegavam aos ouvidos de Lisa, no quarto ao lado.

Às vezes, se imaginava acabando com aquilo, tirando o corpo frágil da mãe debaixo deles, mas nada fazia a não ser chorar também, pois era uma via de mão dupla: Lawan se via no rosto jovial de Lisa e Lisa se imaginava com o mesmo rosto sofrido da velha prostituta com o passar dos anos. A tailandesa não teria um destino diferente, era a herança dolorosa que amaldiçoava todas as mulheres da sua família.

Porém, voltando ao começo do capítulo, aos dez anos de idade, com uma cama para se deitar em uma casa de verdade, Lisa ousou achar que fosse diferente, que no fim não nos tornamos uma versão dos nossos pais. Lawan começou a namorar um homem bom e benevolente, um pastor, sem dinheiro em troca, apenas o puro sentimento que homens e mulheres trocavam desde o começo dos tempos. O amor romântico que passava nos filmes.

Lisa, com os cabelos castanhos e bochechas infantis, achou que esse amor não existia, pois o único amor que recebeu na vida era o que fazia a mãe vender o corpo para dar-lhe o que comer. Era só o que importava. Mas aquele homem apareceu e as deu uma casa, um teto e rotina, escola e amigos, por tempo o suficiente para Lisa aprender a viver com crianças da sua idade, a deitar a cabeça no travesseiro sem se preocupar com o amanhã.

Assim que acordava pela manhã, pedia bênção ao homem. Ele se sentava na ponta da mesa e não permitia que comessem antes da oração: "De manhã ouves, Senhor, o meu clamor; de manhã te apresento a minha oração e aguardo com esperança" ele dizia, os olhos fechados e as mãos entrelaçadas. Lisa e a mãe repetiam o versículo. Os cabelos do homem eram brancos e ralos e ele vestia camisas de botão, calças sociais e sapatos de bico. Lawan engraxava todos com zelo.

Em algumas noites, Lisa ouvia os murmúrios da mãe se misturando à escuridão e, pela manhã, alguns hematomas roxos estampavam o rosto dela. O homem mudava seu pequeno lembrete nestas ocasiões e dizia: "Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como convém a quem está no Senhor" e Lisa e Lawan repetiam o versículo.

Não conte nada a ninguémOnde histórias criam vida. Descubra agora