Era noite. Para Ayreon não importava, ele estava apenas apagado, com uma flecha no crânio e fogo nos pés. Para todos os efeitos, estava morto.
Para muitos, ele não tinha mais retorno, mas para Ayreon a morte era apenas uma condição temporária. Por sorte, a flecha não havia atingido nenhum ponto vital e, aos poucos, Ayreon acordava mais uma vez de seu transe.
Dessa vez não era só a cegueira que o acompanhava, por um momento pareceu estar surdo, a flecha acertara algum sensor auditivo.
Aos poucos, com o leve retorno de seus sentidos, o menestrel ouve uma voz, duas vozes, até que tudo volta a ser o grande rebuliço que sempre fora.
Ayreon podia sentir de novo, mas isso não era necessariamente algo bom. Agora podia sentir o ardor em seus pés, uma dor tão forte da qual nunca havia sentido antes. Algo que o fazia ter vontade de realmente estar morto, ou ao menos voltar a ficar inconsciente.
Gritos de "louco", "estranho" e "encomenda do demônio" ressoavam por toda a praça à sua volta.
A situação era desesperadora, porém gritar por ajuda não estava ao alcance de Ayreon naquele momento. O menestrel não conseguia emitir minimamente sua voz, o calor junto de sua anestesia pelo desmaio, havia desidratado suas cordas vocais. Agora ele era um ex-músico e havia perdido a única inspiração de sua mísera vida.
— Executem-no! — berrava repetidamente um homem de voz rouca e levemente grave, claramente revoltado. — Alcançai o perdão via atos nobres de julgamento!
— Tua nobreza seja uma lei! — respondia um grupo de homens, possivelmente súditos do primeiro.
— Executem-no! — continuava. — Pois a serventia divina depende do sangue em vossas mãos!
— Tua divindade seja uma lei!
— Executem-no! Queimai o mandante do inferno com fogo e com água santa serás curado
— Tua justiça seja uma lei!
— Por fim, ataquem! Executem-no! Executem-no! Executem-no! Agora! — ordenava o comandante ao final do ritual.
A esse ponto, Ayreon já tinha se dado conta de que estava jurado de morte, e não havia muito o que fazer.
Sempre só e jogado ao mundo, Ayreon não costumava seguir a fé, para ele cada ser é seu próprio deus e sua força de vontade é seu poder divino. Mas ele sabia que isso provavelmente não passava de uma crença, como os alto-religiosos sempre o disseram. Mas ainda assim, tinha de haver uma chance de escapar, foi então quando Ayreon fez a única coisa que lhe cabia no momento: concentrar-se em algo maior e suplicar por proteção.
Ayreon sabia que seu destino era irreversível, mesmo que não tivera feito nada digno de acusação. Sua mente se banhava em desespero, enquanto seu corpo estava pronto para ser banhado em lava fervente.
As vozes pararam momentos após a ordem de execução do comandante e o tempo parou diante de Ayreon por alguns segundos. Tinha novamente uma de suas recentes crises, mas dessa vez eram visões conhecidas por serem típicas de pré-morte. O jovem vira diante de seus cegos olhos toda sua curta vida, cada acontecimento relevante. Mesmo não sendo religioso, Ayreon agora sabia o destino que o aguardava, mas não parava de rezar.
Pela primeira vez em décadas, Ayreon via algo com seus próprios olhos. Por algum motivo, ele conseguia finalmente enxergar o mundo à sua volta enquanto os acontecimentos passavam por sua mente. Pela primeira vez podia ver o que os rostos expressavam quando falavam algo para ele. Acima de tudo, ele poderia ver os ROSTOS daquelas pessoas que só conhecia a voz.
Mesmo que fossem apenas lembranças e o surgimento das imagens fosse misterioso, Ayreon estava gostando daquilo, e havia se esquecido por um momento de que estava prestes a se despedir daquele mundo que acabara de descobrir.
No mundo externo, cada vez mais pessoas se reuniam em torno do garoto. Ainda incrédulos com o que estava acontecendo, criticavam o ato daqueles homens por cometerem tal barbárie sem justificativa. Mas sabiam que nada podiam fazer com aquele grupo, nem mesmo gritar.
Calados, todos esperavam apenas o momento final, o momento em que todos chorariam a perda de uma voz que há horas confidenciara segredos com o coração de todos. Cada labareda gerava uma lágrima na alma de um dos cidadãos, mas o destino já estava traçado.
Ayreon ainda estava em seu transe, mas aos poucos reencontrava a realidade. Não conseguia sentir o mundo externo, porém havia recobrado a consciência e a noção de que estava jurado pelo fim.
O jovem estava bastante empolgado com o fato de estar finalmente vendo as coisas, e ainda mais feliz em descobrir que todos à sua volta realmente o admiravam e o queriam por perto, as palavras eram naturais. Pela primeira vez, considerou pensar que a morte não é algo tão ruim assim, que ele precisava disso, apenas gostaria de permanecer mais tempo nesse estado.
Com um estranho sorriso estampado no rosto comumente sem emoção de Ayreon, os aldeões se desesperavam ainda mais, porém com a sensação de que havia algo errado. Alguns pensavam que Ayreon estava fingindo, outros que Ayreon fora possuído por aqueles homens que o atacavam, o prendendo com cordas sobre uma fogueira. Mas o que todos concordavam é que ele estava mudado e aquilo não era natural.
"Que venha o fim", pensava Ayreon aceitando a sina que lhe havia sido imposta. O fogo ardia ainda mais e as memórias agora percorriam todo seu corpo e sua base sensorial. A movimentação dos pensamentos era cada vez mais severa e acelerada. Faltavam milésimos de segundos para o fim.
Já aguardando o fim, Ayreon lançou um último suspiro, inflando o peito de uma forma com que todos podiam notar. E isso causava mais agonia em cada rosto ali presente.
Durante este suspiro, como esperado, caras de espanto surgiram por toda parte. Mas o real motivo dá se ao fim do último exalar do menestrel. Inexplicavelmente, o fogo se apagara, confirmando as desconfianças dos aldeões.
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Ayreon: O Experimento Final
Ficção Científica🥉[3º Lugar melhor ficção - Concurso Sunshine] 🥈[2º Lugar melhor ortografia - Concurso Diamante Azul] 2084 d.C. A humanidade está se destruindo aos poucos, o mundo está por um fio. Diante disso, cientistas do mundo todo se reuniram para enviar de v...