O Antepassado

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— Eu gosto da forma como essa história acaba em mistério — afirmou o Sr. Lucassen, sorrindo, enquanto fechava seu livro.

— É verdade Sr L, ficamos sem descobrir quem era o assassino, — concordou Lisa, levemente interessada na história que seu patrão lhe contava. — mas mesmo assim eu gostei, sentar e ler livros de contos me lembra a minha infância...

— A diferença é que eram naqueles tabletes, né minha filha... — resmungou o hippie.

— É tablet, Sr L, e sim, era a tecnologia da época — Lisa rira enquanto falava. Lucassen não apenas não gostava da tecnologia, como se negava a tentar aprender algo sobre ela, preferia seus velhos livros pesados de capa de couro que enfeitavam a estante de sua sala e adornavam a lateral de sua lareira.

— Isso — concordou Lucassen, seco. — Esse negócio aí mesmo. A diferença é que os meus livros foram feitos à mão pelos meus antepassados, fizeram história, ficaram de herança e estão até hoje sendo contados.

Marjan discretamente revirou os olhos como que rejeitando o falso orgulho de Lucassen por sua família, que a única coisa que realmente ficou de herança fora sua cultura tachada atualmente como ultrapassada. Aquele livro não fazia sentido para ela.

— Ah, e não são contos. — continuou Sr Lucassen. — são histórias reais. Visões para ser mais específico.

— Certo, então se são visões, sabemos qual é o fim da história? — questionou Lisa em tom debochado, mas algo que não transparecesse.

— Mas é claro! — empolgou-se Lucassen, sem notar que tratava-se de uma ironia. — Wilhelm era curioso e imparável, enquanto não conseguisse desvendar seu mistério, não se daria por vencido. Diria que se fossem outros tempos, largaria a batina e se tornaria detetive. Enfim, com a ajuda de mais algumas pessoas, ele descobriu que os próprios reis estavam matando seus povos. O livro não era o motivo pelo qual a lei da proibição da diversão foi instaurada, mas sim a lei foi o motivo do livro.

— E o que tem o livro então? — Lisa ainda não estava entendendo onde o senhor queria chegar.

— Os reis não aceitavam que meros cidadãos tivessem o mesmo lazer que lhes era conferido, então, ao descobrir que criaram o livro de piadas, fizeram questão de sumir com exemplares e envenenaram o restante. Os dedos e línguas pretos eram resultado do veneno. Quando tocavam na página e, em seguida, molhavam o dedo na boca para virá-la, o veneno entrava em seu organismo, causando confusão mental e morte.

— Entendi, faz sentido... Mas que péssimo rei — agora que sabia do resto da história, Lisa lembrara que sua avó costumava contar uma história parecida. Mas era apenas um conto de terror para assustar criancinhas, ainda custava a acreditar que eram visões. Mas como nostalgia, resolveu continuar o assunto. — Mas o que aconteceu com os garotos, então? Continuaram com Wilhelm?

— Não faça pergunta difícil, minha jovem — gargalhou Lucassen. — Tudo o que eu sei é o que está nesse livro. É para isso que essas velhas porém sedosas folhas servem. Elas guardam memórias. Memórias de um tempo que nunca vivemos, de pessoas que nunca sequer conhecemos... A pessoa que escreveu isso sequer falava nossa língua, a escrita era outra... Um antepassado que não conheço a não ser de nome, mas que gerou várias heranças para minha família, como disse antes. E essa é a magia que um livro traz, muito mais que pedaços de lata que enferrujam, estragam e os... como vocês chamam mesmo? Tabuleiros?

— Dados

— Isso, os dados. Eles se perdem...

— Ok, até que o senhor tem razão... — afirmou Lisa, ainda se recuperando do riso, pela confusão dos "dados" do Sr Lucassen. — Tenho uma última curiosidade. Sei que o senhor não conhece, mas qual é o nome desse escritor, que o senhor disse que sabe, mesmo?

— Certo... Vamos chamar por enquanto de "O Antepassado", pode ser? — afirmou Lucassen, sorrindo, claramente com lembranças, enquanto se levantava de sua cadeira, com certa dificuldade, e encaminhava-se ao quarto.

— Espera Sr L, eu te ajudo. Aonde o senhor vai?

— Vou me deitar...

Eram 19:30h, não estava nem perto de dormir. Não era comum que Lucassen fosse dormir àquela hora, o que causou certo estranhamento em Lisa. Mas, como uma boa cuidadora, a mesma decidiu não questionar. Colocou-o em sua cama e repetiu os cuidados como toda noite comum, apenas desejando que não estivesse acontecendo nada de errado.

— Um minuto, já venho. — afirmou Lisa enquanto buscava os remédios do velho. Apesar de tudo estar muito estranho, Lisa não podia se esquecer de suas obrigações e, ainda que Sr. Lucassen fosse dormir, ele precisava tomar seu remédio. Suas crises estavam cada vez mais frequentes e agora que acreditava em visões era o momento mais preocupante a todos.

— Sabe porque vim dormir? — continuou Lucassen, enquanto mordiscava um comprimido e expunha seu braço para seu remédio. Parecia ter lido a mente de Lisa.

— Por quê? — questionou Lisa, após uma pausa, enquanto retirava a seringa.

— Por causa das histórias... — afirmou Lucassen com os olhos distantes. Aquele remédio lhe causava sono imediato.

— O que tem as histórias?

— Elas não só me causam nostalgia, mas quando durmo elas me causam um efeito gostoso... visões... imagens... cores.... histó... — contava enquanto dormia, até que fechasse completamente seus olhos, caindo em sono profundo.

Com um olhar de canto, Lisa sorria, enquanto acariciava os longos cabelos loiros, que, apesar da idade, ainda eram muito fortes, para que Lucassen dormisse em paz. Ela sabia que sua situação era preocupante. Sua mente possivelmente estava criando ilusões. Mas era aquela mente, talvez, a mais fértil e sã daquela sociedade, onde todos os outros eram reféns de máquinas e seus próprios egos. Aquela loucura lhe dava paz, ou talvez estivesse ficando louca junto, mas tudo o que sabia é que estava gostando daquilo.

Lisa levantou-se calmamente para que o velho hippie não acordasse de seu tão desejado sono e, como ainda estava cedo, dirigiu-se de volta à sala, em frente à lareira.

É certo que Lisa não acreditava em nada daquilo, mas se tinha algo em comum com os personagens daquela história é que ela também não parava um mistério pela metade, e agora era questão de honra descobrir o nome do autor do livro e o que há por trás daqueles contos.

Olhou para os lados, apenas por costume, não havia ninguém naquela casa há anos, abaixou-se levemente até a mesa de centro, feita de madeira, pegou cuidadosamente o livro, sem fazer barulho para não acordar, Lucassen e sentou-se no chão, na região da lareira.

O mistério era tanto que o livro parecia exercer pressão nas mãos de Lisa, como se quisesse se soltar. A mente de Lisa estava repleta de adrenalina e certamente estava lhe criando aqueles momentos de filme de terror dos anos 2000 que sua avó colocava no Blu-Ray para assistir. Sua vó era bastante diferente e gostava de assustar os netos com filmes para maiores.

Mas não havia motivo para medos, e sim para coragem, pura coragem como Lisa sempre teve quando queria algo. Foi com muita adrenalina e um sorriso de ponta a ponta, naquela sala silenciosa, que Lisa abriu a capa do livro, simultaneamente com a campainha que soara da porta.

A campainha ainda era analógica, diferente do chip coclear de hoje em dia, que vibrava e bipava quando alguém esperava na porta. Não havia também drone na porta, então não dava para saber quem estava lá pelo holowatch, o relógio holográfico que Lisa vestia.

A única questão que mais amedrontava Lisa é que ninguém visitava aquela casa desde que chegara lá. Ainda assim deixou o livro, apressadamente, de volta sobre a mesa e vagarosamente foi em direção à porta.

Lisa ficou de frente para a porta e deu uma última respirada funda antes de abrir a porta. Passou a mão pelas chaves, destrancou a porta, a abriu vagarosamente, abaixando a maçaneta, com os olhos voltados para o chão.

— Quem é você? — soou uma voz de homem na porta.

Lisa estava com medo de olhar mas precisava tomar coragem. Levantou a cabeça e se deparou com algo inesperado. O homem que estava na porta só lhe remetia a uma pessoa: o Sr. Lucassen, apenas alguns anos mais jovem.

Ayreon: O Experimento FinalOnde histórias criam vida. Descubra agora