— Você precisa ir! — insisti, enquanto Marina teimava comigo no banco do passageiro. — Se não for, depois vai ficar arrependida.
— Ah, eu garanto que não vou! — exclamou ela, cruzando os braços num gesto cada vez mais familiar para mim: a pose de menina teimosa.
— Vai, sim. Você pensa que eu não percebi sua cara de preocupação quando você não está ocupada fingindo que não liga?
Eu estava me referindo à overdose de Débora. Dias atrás, quando estive em sua casa para falar sobre Marina, ela começou a passar mal na minha frente e eu tive que sair correndo, gritando por socorro. Dona Fátima chamou uma ambulância e Débora pôde ser salva.
Eu tinha ligado diversas vezes para o hospital para saber dela e pude sentir o pânico dar lugar ao alívio nos olhos de Marina quando soubemos que estava tudo bem. Aparentemente, o acontecimento tinha ativado um alerta do tipo "conserte as coisas, senão as coisas consertam você" na cabeça de Débora, porque ela mandou um recado através de Fátima — que tinha ficado com meu número de telefone — pedindo que eu levasse sua filha para casa, pois ela queria se desculpar.
— Tá! Tudo bem. É minha mãe, né? É claro que eu fiquei preocupada, mas isso não significa que eu queira vê-la. Não vai dizer que você acreditou mesmo nessa história de se desculpar?
— Não sei. Talvez seja ingenuidade da minha parte estar insistindo com você para ir, mas acho que você deve ao menos ouvir o que ela tem a dizer.
— Por quê?
— Porque ela podia ter morrido e você sabe disso. E você nunca teria a chance de falar com ela de novo.
— Não sei se isso seria tão terrível assim — disse Marina, reassumindo sua máscara de quem não se importava, mas eu sabia que ela entendia o que eu queria dizer. Era um ato reflexo dela reagir com cinismo diante das verdades que lhe causavam dor.
— Não diga isso — respondi simplesmente, lembrando da minha própria mãe e do quanto eu daria por um só dia a mais ao lado dela ou de meu pai.
Marina pareceu perceber que tinha "atingido um nervo" e perguntou baixinho, como se falar mais alto pudesse tornar a pergunta mais invasiva:
— Onde está sua mãe?
— Morreu há um tempo — contei sem entrar em detalhes, aceitando sua expressão compungida como uma forma de carinho. Em seguida, desfiz a cara triste e sorri com serenidade. — Mas não vamos falar sobre isso, ok? Falar nela acaba me deixando com muitas saudades.
— Tudo bem — concordou. Então suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. — Tá, já entendi que preciso parar de enrolar. Vamos ver minha mãe.
— Isso! — comemorei com um gesto de satisfação e dei partida no carro.
O caminho foi sem muitas conversas, cada uma de nós imersa em suas próprias lembranças, em sua própria dor. Eu, pela saudade da pessoa que tanto me tinha amado. Ela, por saber exatamente quem era a mãe de quem tanto sentia falta, mesmo que ainda estivesse viva.
— Chegamos — disse eu, quebrando o silêncio depois de estacionar na frente da casa de Débora.
— Você pode entrar comigo? — disse Marina, desistindo de fingir que aquela situação não a afetava.
— Não acho que devo. O assunto é entre vocês duas.
— Por favor. Você é minha única amiga — disse ela, segurando minha mão. — E eu me sinto fraca pra fazer isso sem você.
— Tudo bem. Vamos juntas então.
Tenho que confessar que estava perdida com aquela garota. Toda vez que ela me olhava com aqueles olhos de menina indefesa, eu cedia para praticamente tudo que ela quisesse. Então saí do carro primeiro, e abri a porta para Marina, tentando incentivá-la a sair logo. Dando um suspiro pesado, ela segurou a mão que eu oferecia e não largou mais.
Entramos sem bater nem nada, porque Marina tinha uma chave. Débora devia ter ouvido o carro, porque estava esperando como se estivesse preparada, sentada no sofá sujo que um dia deve ter sido florido. Agora eram apenas manchas desbotadas num tecido rasgado.
— Tô vendo que trouxe a sua guarda-costas. Por quê? Você acha que vou fazer alguma coisa contra você? — disse Débora assim que me viu.
Marina não gostou de ouvir isso e senti sua mão tremer entre meus dedos. Não era fácil pra ela estar ali. E a mãe não parecia querer facilitar. Quando a menina doce de segundos atrás se virou pra mim, percebi seu rosto cheio de raiva, medo e frustração. Uma aura negra ameaçou envolvê-la e eu soube o quanto aquele lugar lhe fazia mal.
Imersa em sombras, Marina se parecia ainda mais com a mãe: o mesmo rosto, a mesma linha perfeita do maxilar, a pele morena apenas alguns tons mais clara, os cachos negros só um pouco mais soltos, diferenças sutis. Mas o que realmente diferia eram os olhos, mais claros, de um tom quase cor de mel, e infinitamente mais fortes. Ela era só uma menina, mas jamais se deixaria envolver completamente por aquela atmosfera negativa que a mãe lhe trazia. Era simplesmente forte e boa demais para isso.
— Ela não é minha guarda-costas. É minha amiga e está cuidando de mim. Você devia ter mais respeito, porque ela salvou sua vida. Se ela não estivesse aqui pra chamar a ambulância a tempo... — disse, me defendendo, sua voz rígida mostrando que estava no controle daquela situação.
— Tá, tá, não precisa ficar nervosa. Eu sei que você tem razão. Obrigada, loira.
— Não tem de quê — respondi. — Meu nome é Clara, aliás.
— Certo, Clara. Você pode me dar um minuto com minha filha?
— Não! Ela fica! — gritou Marina, interrompendo minha saída.
— Tudo bem — disse Débora, cedendo com um gesto que pedia que a filha se acalmasse. — Eu só queria te dizer que sinto muito por ter feito todas as coisas que fiz com você, e que estou feliz que você tenha encontrado alguém que faz o que eu não pude, mesmo se ela quiser alguma coisa em troca.
— Eu não quero nada em troca — me defendi. — Só encontrei alguém que precisava de ajuda e ajudei. Não há nada além disso.
— Tá certo, loira. Eu só quero que você saiba que isso é temporário. Quando eu quase morri, percebi que não quero ir embora. Está cedo demais ainda. O médico me disse que eu preciso tomar juízo, porque de outra dessa eu não escapo, que eu já abusei demais do meu corpo e da minha saúde. Eu só dou graças a Deus que a Marina nunca quis se meter com essas coisas. Não sei como, mas ela é uma menina ajuizada. Lá no hospital me disseram que tem uma clínica de reabilitação dessas de caridade, eles vão conseguir uma vaga pra mim lá. Quando eu sair, queria tentar de novo, minha filha. Eu queria tentar ser sua mãe. Você acha que a gente consegue?
— Eu... Acho que podemos tentar — respondeu Marina com voz relutante, mas seus olhos se encheram de esperança.
Débora pareceu feliz também, de certa forma. Havia um caminho longo pela frente, mas não era impossível trilhá-lo. Certamente, eu esperava que ela conseguisse.
Meio sem jeito, ela se levantou e veio em nossa direção, parando em frente a Marina. Estendendo os braços, deixou-os cair ao lado do corpo logo em seguida, como se não soubesse direito o que fazer. Como se não estivesse acostumada.
— Você pode me dar um abraço? — pediu, criando coragem.
Marina hesitou. Acho que não porque não quisesse abraçar a mãe, mas, ao contrário, porque parecia querer muito. É estranha a sensação de finalmente ter diante de si algo que você sempre desejou. Toquei as costas dela, impulsionando-a ligeiramente para frente. O primeiro passo forçado pareceu libertar os demais e num instante elas estavam nos braços uma da outra.
— Eu vou sair dessa, minha filha. Eu te prometo.
— É o que eu mais quero, mãe.
O cômodo para mim se encheu de luz. Era algo que eu podia enxergar, mesmo quando ninguém mais podia: esperança.
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Entre a Luz e as Sombras
ChickLitClara é um anjo que vive na Terra com um corpo humano. Um anjo solitário, mas nem tanto. No bar de roqueiros onde trabalha, ela bem que tenta ajudar o próximo e proteger seu coração divino ao mesmo tempo, afinal, já conhece os perigos de se apegar m...