A voz de Marina me acorda às 4:23 da manhã. "Aconteceu uma coisa", ela diz e está chorando muito. Fernando pega o telefone e me passa o endereço para onde dirijo quase às cegas, grata por não me perder mesmo sabendo o caminho de cor.
"Aconteceu uma coisa."
As palavras ficam se repetindo num ciclo infinito e destrutivo dentro de minha cabeça, esmigalhando todos os meus pensamentos coerentes e abrindo espaço para as imagens horrendas que se prendem ao lado de dentro de minhas pálpebras. Elas me machucam e me impedem de fechar os olhos para me defender da dor. Espantar o mundo lá fora não é mais uma opção quando o meu próprio não é mais seguro.
Sangue. Os quadros horríveis que vejo estão pintados de vermelho-sangue.
Assim que chego ao hospital, Marina se agarra a mim. É como antes, quando precisávamos uma da outra e eu era a única pessoa que ela tinha. Acho que é porque ainda preciso dela tanto que este abraço amedrontado me torna ainda mais consciente de tudo o que posso perder. Neste momento, nada mais importa, a não ser segurar-me a ela também, desejando poder tomar sua dor e sua aflição para mim.
Fernando se aproxima e eu o vejo, por sobre o ombro de Marina, me observar com olhos cansados e tristes. Tem algo de estupefação também, como se só agora ele tivesse entendido de verdade o que ela certamente lhe falou sobre nossa história. Sei que ele tem muitas perguntas, mas não vai fazê-las neste momento. Eu também não digo nada, apenas lhe dou o direito ao pasmo que lhe causo.
Ainda consigo sorrir para ele, porém. Porque mesmo em uma situação em que sorrisos parecem antinaturais, não é assim com aquele homem que já me é tão familiar. Principalmente quando ele também me sorri, contidamente, dolorosamente, em reconhecimento. Sabe que amamos as mesmas pessoas, e que isso nos torna personagens da mesma história.
Sentamos os três juntos no sofá da sala de espera enquanto ele me conta que, não muito longe da saída de um clube noturno, uma moto atingiu Caio em cheio, quebrando suas costelas e rompendo seu baço, fazendo com que ele sangrasse por dentro, como parecia que eu sangrava agora imaginando a cena. Ele foi deixado ali, sozinho, e teria morrido se alguém que viu o motoqueiro se levantar trôpego e fugir do local não tivesse chamado socorro imediato.
Marina aperta forte minha mão, e eu a dela, quando as palavras de Fernando desenham para mim as cenas que doem em nós três. Conto a eles sobre Esther e sobre o Caio embriagado e arredio de mais cedo. Sobre como ele não aceitou o táxi para casa e parecia disposto demais a se sujeitar às vontades da "amiga". Eles me olham incrédulos, tão certos de que aquele não é o filho que conhecem, como de que agora não importa mais. Que mesmo que ele pudesse, de alguma forma, ter atraído aquilo, tudo o que queremos é que as coisas terminem bem. Da maneira como provavelmente teriam terminado se aquela mulher não tivesse cruzado seu caminho.
Imagino o momento em que ela o deixou sozinho e fora de si, completamente incapaz de cuidar de si mesmo, e quando ele deve ter tentando ir para casa a pé, sem, no entanto, dar conta dos passos de suas próprias pernas. Tenho vontade de voltar no tempo e impedir, em todos os momentos e de todas as formas que teriam sido possíveis, que ele saísse do On the Rocks com aquela...
Sim, eu a considero culpada. Ele é adulto o suficiente para se responsabilizar pelos próprios atos e eu não o estou eximindo disso. Ninguém o forçou a beber. Mas, no momento, não consigo enxergá-lo dessa maneira. Enquanto estou aqui, na companhia de seus pais aflitos, limpando inutilmente as lágrimas que escorrem sem parar pelo rosto de Marina, ele é só um garoto. Nosso garoto. Deitado em uma maca, passando por uma cirurgia de emergência quando a lembrança de sua vivacidade é mais recente do que a última vez em que vi a luz do dia.
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Entre a Luz e as Sombras
Literatura FemininaClara é um anjo que vive na Terra com um corpo humano. Um anjo solitário, mas nem tanto. No bar de roqueiros onde trabalha, ela bem que tenta ajudar o próximo e proteger seu coração divino ao mesmo tempo, afinal, já conhece os perigos de se apegar m...