Em Teu Prazer (Degustação)

3• Lembranças

Dor. Essa palavra definia perfeitamente seu estado físico naquela tarde ensolarada. Em dias quentes como aquele, nos quais o termômetro ultrapassava os trinta graus, Eva naturalmente sentia-se indisposta graças a sua aversão ao calor. O tempo parecia arrastar-se, seus sentidos por vezes falhavam e ela ficava bastante estressada. Mas naquele dia em especial, após uma noite de bebedeira, sons estridentes e um quente e suado encontro com Matteo, Eva sentiu-se como um gato atropelado. Sua cabeça doía, seu corpo formigava e o estômago revirada. Depois da primeira experiência em um carro, ela havia feito uma anotação mental de que aquele era um fetiche doloroso. Bom, mas doloroso.

— Eva, o balcão! - uma voz a alertou. Ela olhou para trás e viu que um dos escreventes estava chamando sua atenção. Havia um advogado aguardando atendimento.

Ela suspirou, derrotada. Levantou de sua cadeira, ação que demandava uma força muscular que ela não detinha no momento, e olhou para o computador rapidamente para checar as horas. Aquele estava sendo um dia insuportavelmente longo. 

— Eva! - outra voz chamou, em tom de repreensão. Mais um ponto pela sua desatenção completa. — Hoje alguém está com a cabeça nas nuvens.

Apressada, foi até o comprido balcão de mármore que bloqueava a entrada da ampla sala e procurou um bloco de notar para anotar as demandas do advogado. 
A sala ampla e preenchida por diversas mesas e cadeiras continha três enormes corredores abarrotados de processos, todos organizados por número. Ao redor deles, as mesas e computadores se comprimiam, ocupadas pelos funcionários públicos que cuidavam daqueles processos. Eva, dentre as diversas funções adicionais que cumpria, era a estagiária responsável por atender o balcão.

— Boa tarde, doutor. - Ela cumprimentou, em tom formal.

O homem na sua frente era muito bonito, ela teve de admitir. Com seu terno perfeitamente polido, uma barba sem falhas e cabelos alinhados, ele era o significado de simetria. Por alguns minutos, fantasiou cenários nada formais com o doutor, mas em seguida recriminou-se. Um homem como aquele jamais olharia para ela. Naquele tarde, todos os advogados haviam decidido exterminar as horas de trabalho acumuladas do dia anterior. Os pós feriados eram sempre assim pois, como o fórum não funcionava em datas comemorativas, o dia seguinte era repleto de trabalho. E trabalho adicional era um sinônimo para "estagiários em trabalho dobrado".

Além de Eva, outros dois jovens compunham as mesas dos estagiários, estudantes do ensino médio que trabalhavam meio período. Apesar do salário péssimo e do estresse diário que um cartório podia causar, Eva se sentia extremamente feliz. Ali era o lugar onde descobrira sua vocação. Há quase dois anos atrás havia conseguido passar na prova de admissão promovida pelo fórum e, por isso, enquanto estivesse estudando, poderia trabalhar lá. O primeiro ano foi difícil para ela. Falar ao telefone, atender balcões e interagir com o público constituíam uma batalha diária contra sua maior inimiga, a insegurança. 

Os meses passaram e Eva aprendeu a lidar com sua função e com a timidez. Todas as tardes, quando ela chegava, tinha a tarefa de subir ao andar superior e recolher a assinatura do juiz em guias de pagamento. Cada dia era um desafio a si mesma.

Em uma daquelas tardes, pouco depois de Eva completar um ano de trabalho, ela entrou no gabinete durante uma audiência. Havia uma ampla mesa de madeira no centro da sala, que tomava o lugar do vazio habitual. Atrás da mesa, resguardado por uma pequena escada e seu computador, encontrava-se o juiz. Em casos como aquele, Eva tinha recebido instruções de entrar pela direita e entregar os papéis. Em seguida, retirava-se da sala e aguardava até que ele a chamasse.

Do lado de fora, enquanto aguardava o doutor assinar os diversos documentos, ela pôde observar uma senhora e sua advogada, que esperavam no corredor do gabinete. Distante, um senhor, que aparentava ter a mesma idade, cochichava com o advogado. Deveriam ser as partes da audiência.