Whit
Preciso levar Wisty para um lugar seguro, tipo, agora. Parece que conseguimos nos livrar
daqueles porcos malditos e de seus cassetetes por alguns segundos preciosos, então, me viro para tentar encontrar outro beco... e quase bato com tudo no meu próprio rosto. Dou um passo
cambaleando para trás, sentindo um arrepio na espinha.
E então os vejo.
Uma centena de pôsteres, ou milhares deles, vai saber, em cada poste e janela. Wisty e eu.WISTERIA ROSE ALLGOOD e
WHITFORD P. ALLGOOD.BRUXA E BRUXO.
CRIMINOSOS ALTAMENTE PERIGOSOS.
PROCURADOS VIVOS.
QUASE MORTOS: ACEITÁVEL.Giro ao meu redor de novo, mal consigo respirar. Sinto olhares sobre mim vindos de todos os
cantos. Uma velha sorri para nós com a boca banguela. Uns caras de terno passam trotando pelos
degraus de mármore do prédio do Capitólio, apontando seus charutos em nossa direção. Tem
uma menininha mais ao lado, os olhos cinza fixos em mim. Ela sabe.
Todos eles sabem.
Bem na hora, o esquadrão de soldados entra correndo na praça, virando a cabeça e nos
procurando. E, como uma cena tirada de um filme de terror, os lobos zumbis começam a uivar.
Vejo daqui um prédio de pedra pequeno e meio destruído pelos bombardeios ao final de uma
rua lateral; parece um bom esconderijo. Pelo menos é melhor que sentir as mandíbulas daqueles
cães de rua meio mortos. Vou de fininho até lá, tento chamar o mínimo de atenção e entro pela
porta lateral.
Uma pintura gigantesca do O Único Que É O Único me recebe, a cabeça careca e os olhos
Technicolor me olhando lá de cima, e uma placa na parede com os escritos: “CONFESSE SEUS
CRIMES À NOVA ORDEM E VOCÊ SERÁ POUPADO. O ÚNICO JÁ SABE DE TUDO”. Vejo
cartuchos de bala no chão.
Putz, isso aqui pode ser... uma cilada.
Mas não tem ninguém aqui. Estamos seguros, por enquanto.
Meus ombros e os músculos da minha lombar estão quase gritando de dor, coloco minha irmã
no chão. Ela é a própria imagem da morte. Eu a coloco sentada no meu colo.
— Por favor, Wisty — imploro, limpando o rosto dela com minha camisa. — Fique aqui comigo.
Seu cabelo ruivo está molhado de suor, mas ela está batendo os dentes. Seguro sua mão úmida e gelada, sussurro as palavras de alguns de meus feitiços infalíveis de cura, e junto toda pontinha de esperança que ainda tenho nessa mistura.
Mas... nada funciona.
Será que meu poder secou? Sou um bruxo, mas não consigo nem salvar minha própria irmã.
Ela é tudo na minha vida, minha melhor amiga. Não posso simplesmente ficar sentado aqui e ver
Wisty ficar cada vez mais fraca, assistir a seus olhos incharem enquanto o sangue escorre para
dentro deles, acompanhar enquanto ela fica consciente e apaga de novo, até seu mundo ficar na
escuridão para sempre. Não posso continuar assistindo à morte das pessoas que mais amo na
vida.
Já fiz isso.
Duas vezes.
Estremeço, pensando no pai e na mãe. “Se eles tivessem me ensinado um pouco mais sobre
como dominar esse poder antes...”
Não consigo terminar o pensamento.
Não é apenas um problema com meus poderes, tenho certeza. Tem alguma coisa no ar, aqui
na capital, como se O Único o tivesse envenenado, ou algo do tipo, e que está transformando os
seguidores da Nova Ordem em pessoas vazias, que só sabem concordar, e como se os pobres
dissidentes em potencial estivessem se transformando em vítimas da Peste do Sangue, se
contorcendo e resmungando pelas ruas.
— Por que você teve que se oferecer para trabalhar como voluntária naquele campo maldito
para vítimas da peste e ficar doente, Wisty ? — sussurro para ela em meio a lágrimas de raiva. —
Já vimos do que O Único é capaz, e, se ele quiser que cada pessoa com pensamento livre no
gueto fique doente, não tem feitiço de cura nesse mundo que vá tornar você imune!
Eu preciso da minha irmã, a sabe-tudo irritante, a líder rebelde, a maior ameaça à Nova
Ordem, a roqueira inesperada, a bruxa extraordinária... Não posso fazer isso sozinho. Não; não
posso fazer isso sem ela. Ela era a única pessoa que eu tinha no mundo.
Minha respiração fica presa na garganta. Já estou pensando na Wisty usando o verbo no
passado.
Sinto tudo em mim explodir de uma vez só. Dou um soco na pintura do Único, mas, como se
fosse feita de metal, minha mão lateja de dor.
— Eu não faria isso se fosse você — diz uma voz vinda da porta. Eu me viro para ver um
soldado jovem, que, pelo jeito, está usando o uniforme do pai, grande demais para ele, apontando
uma arma para mim.
Quase dou risada. Esse é o imbecil que vai nos levar embora?
— É, eu meio que já sabia disso. Valeu — respondo, protegendo minha mão machucada. Olho
para trás dele. Parece que ninguém seguiu esse cara até aqui.
— Em favor da Nova Ordem e em nome do Único Que É O Único — ele olha para cima e faz
reverência para a pintura —, exijo que você renda seus poderes e me entregue A Única QueTem O Dom.
Ele está falando da Wisty . O Único quer o fogo dela. Dou alguns passos em direção à minha
irmã, tentando protegê-la. A pontaria da arma me acompanha e aponta bem entre os meus olhos.
— Parado aí, bruxo! — a voz adolescente dele desafina. — Mais um passo e mando você
daqui para a próxima dimensão. — É como se ele tivesse ensaiado essas falas brincando com
seus soldadinhos de brinquedo.
— Na verdade, eu já fui para a próxima dimensão. — Tiro um sarro. — A Terra das Sombras
não é tão ruim assim. — Mesmo com a mão machucada, eu poderia jogar esse cara no chão
rapidinho, se chegasse um pouco mais perto.
Quando ele percebe que não estou nem aí, sua expressão azeda demonstra toda a sua
insolência, e ele decide fazer ameaças mais sérias.
— Ou então posso matar a menina — ele diz, apontando a arma para Wisty . — Até me dariam
uma medalha.
Não dariam, não. Ficariam loucos da vida se ele destruísse o potencial de tanto poder, e
provavelmente o executariam na hora. Mas não digo nada; minha atenção está concentrada no
dedo dele, que brinca sobre o gatilho.
— Então, tá. Não precisa exagerar — digo, erguendo as mãos. — Vamos nos acalmar. —
Tento manter minha voz num tom normal.
Menino-soldado com lavagem cerebral. Quando a primeira morte ainda parece um jogo,
quando ainda parece que a vítima vai se sentar e pedir para jogar de novo.
Mas Wisty não vai.
O silêncio fica suspenso entre nós enquanto o moleque debate com a consciência e o orgulho.
Eu já sei qual vai vencer, qual sempre vence. Ele estreita os olhos para o alvo, seu dedo fica
tenso. Começo a suar, pronto para me jogar à frente da minha irmã.
Mas, antes que eu consiga chegar até ela, os olhos dele tremem e ele se esborracha no chão.
Solto o ar bem devagar. “Mas o que acabou de acontecer? Será que meu poder finalmente
acordou e foi com tudo para cima dele? Será que consegui mandar um espasmo bem no alvo?”
Não. Alguma coisa acertou o moleque na parte de trás da cabeça. Vejo um objeto rolando
pelo chão ao lado dele, até parar. Um globo de neve?
Atrás dele está aquela menininha de olhos arregalados e rosto sujo que me observou na praça. Ela parece destemida e sua boca entorta para o lado de tanta irritação.
A expressão dela meio que me faz lembrar da Wisty quando estava muito brava comigo. A
menina está do lado de fora da porta, fazendo um gesto e me chamando para ir para o beco.
— Você só vai ficar aí de boca aberta, ô menino bruxo? Tem muito mais de onde isso veio, se
você quiser tirar uma soneca.
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Bruxos e Bruxas - O Fogo
Teen FictionVocê pensou que seria um conto de fadas? Whit e Wisty Allgood sacrificaram tudo para liderar a Resistência contra o regime sanguinário que governa o mundo. O líder supremo, O Único Que É O Único, baniu tudo o que havia de bom: livros, música, arte e...