Capitulo 10

21 0 0
                                    

Whit

        No chão de cimento do apartamento, no porão, Wisty revira nos lençóis encardidos e sua respiração volta em arfadas rápidas e imprevisíveis. O suor continua brotando na testa dela, e seus dentes batem por trás de seus lábios brancos e secos.

        Isso tem que dar certo.

        Pearl se senta ao meu lado, fingindo estar de saco cheio, mas estou segurando uma das mãos dela e uma da Wisty com determinação enlouquecida. Wisty tosse violentamente, e gotas de sangue aparecem nos cantos de sua boca.

        Passo a língua pelos lábios e tento engolir meu pânico. Tenho que fazer isso rápido; estou perdendo minha irmã.

        Solto a mão de Pearl e começo a folhear meu diário em busca de um feitiço, mas ela pega o livro com os dedinhos ágeis de quem é treinada para roubar.

        — Poemas? — a menina parece assustada de verdade.

        — Me dê isso aqui. Agora — digo em um tom normal. Estou me esforçando ao máximo para não gritar com ela.

        — Tá bom — ela diz, e joga o diário na minha cabeça. — Vou ali para o cantinho, tá, me afogar no meu próprio vômito.

        — É isso que está acontecendo com a minha irmã neste exato momento, graças à sua falta de cooperação. — Solto um suspiro, frustrado.

        Eu me inclino sobre Wisty para afastar seu cabelo ruivo como fogo de suas bochechas pálidas.

        — Olhe aqui, Wisty, você ainda tem muito o que viver, muito mesmo — digo baixinho. — Você ainda tem muita música para cantar, muito fogo para queimar e muito o que me xingar quando quero dar um conselho para você. E esse é o melhor conselho que seu irmão mais velho aqui pode lhe dar na vida... — Engulo em seco, quase chorando, mas me forço a dizer essa última parte mesmo assim, porque preciso que minha irmã me ouça. — Você não tem permissão para morrer, tá? Definitivamente, não.

        Wisty não se mexe e sua respiração continua rasa, mas a expressão de Pearl fica mais leve e ela me olha com uma cara de dó, como se fosse começar a chorar de verdade a qualquer momento.

        — Tenho uma coisa para dizer. — Meio sem jeito, Pearl pousa a mão sobre o ombro de Wisty. Fico encarando a menina, não sei o que seu ato quer dizer, e ela me lança um olhar irritado. — Feche os olhos, Whit. Isso aqui é tipo uma reza. — Eu a obedeço e a ouço se sentar ao meu lado.

        Espero que ela faça alguma observação engraçadinha, mas, quando ela fala, sua voz soa triste e sincera.

        — Whit parece gostar muito de você — Pearl começa. — Eu também tinha um irmão de quem gostava muito. E ele sempre ficava de olho em mim. — Ela não fala nada por um momento. — Agora, ele já não está mais entre nós e... — A voz dela treme, sinto meu coração batendo na garganta. — E foi a pior coisa que aconteceu comigo, então eu sei como ele se sente.

        Pearl faz uma pausa, como se estivesse decidindo se deve continuar ou não.

        — Então... vê se acorda logo. Amém.

        Abro os olhos, mas o rosto pálido de Wisty ainda está imóvel.

        Pearl aperta minha mão com força, como se a ideia tivesse sido dela desde o começo.

        — Beleza, bruxo — ela diz gentilmente —, agora é a hora de você fazer aquele lance com o poema.

        Abro meu diário, e as palavras de Murry Robinson se desdobram na página à minha frente:

                        Por mais que a Morte não deixe em vão
                       Aqueles que deve levar consigo,
                       Jamais quebraria meu coração,
                       E carregar-te-ia como castigo.

        Fecho meus olhos com força, e um arrepio passa pelo meu corpo quando imagino a figura embaçada e esquelética da Morte apontando um dedo pontiagudo para Wisty e, então, partindo, derrotada.

        A Morte tem a cara do Único.

        Sinto a raiva se acumular em mim até que me vejo tremendo de ódio, dor e frustração que vêm de perder tudo aquilo que se ama no mundo. Repito o poema sem parar, minha voz cheia de força, segura, e ouço Pearl cantarolando os versos ao meu lado também, suas palavras cheias de lágrimas por Ziggy e por outros que a Morte insistiu em carregar.

        A energia passa, através de nós, para o corpo frágil de Wisty, e a única lâmpada da sala pisca e explode. Meus dedos queimam com a faísca de um poder novo e puro, um poder que cura.

        Quando o fluxo de energia baixa um pouco, olho para Wisty. Seguro a respiração, esperando ver os efeitos do meu poder, a cor voltando para suas bochechas, o sorriso meio de lado que conheço tão bem, sua própria magia emanando de seu corpo mais uma vez. Funcionou. Eu senti.

        Mas ela não está se mexendo. Não dá para saber direito se está respirando.

        Meu coração acelera. É como... é como se ela já estivesse morta. Pearl está me encarando com os olhos arregalados e nervosos. E se isso que acabei de fazer na verdade matou a Wisty em vez de salvá-la?

        Bem quando estou pronto para perder as esperanças e desistir de vez, as pálpebras de minha irmã se abrem.

        Sei lá o que eu estava esperando; lucidez, talvez? A magia não deixou Wisty novinha em folha, nem 100% bem, mas mesmo assim alguma coisa mudou. Os olhos dela estão atordoados e febris, queimando ao olhar nos meus.

        E não estão mais manchados de vermelho ao redor.

        — Wisty ! — grito, apertando minha irmã forte demais, sem conseguir interromper esse abraço.

        — Oi, Whit — ela diz, com a voz embargada. — Eu estou... bem.

        Lágrimas escorrem pelas bochechas dela, e quase choro de tanto alívio. Ao fazer esse pequeno esforço, Wisty desmaia de novo, mesmo assim um fluxo de pura alegria passa pelo meu corpo. Não sei como, mas tenho certeza de que ela vai sobreviver.

        Tenho o poder da cura. É assim que se sente quando se é invencível.

Bruxos e Bruxas - O FogoWhere stories live. Discover now