Capitulo 4

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Whit

        — Pearl Marie Neederman — ela disse de má vontade, sem estender a mão para me cumprimentar. — Minha casa não fica longe.

        Com a pulga atrás da orelha, sigo a menina. Passamos pela parte de trás do prédio e entramos abaixados num beco barrado por cordas e com uma placa que diz: “zona de quarentena”. Bom, carregar minha irmã quase morta nas costas de volta para a praça pública cheia de soldados também não me parece uma boa opção.

        Pearl Marie é pequena, mas rápida como um relâmpago, mesmo carregando uma bolsa grande. Com Wisty nos braços, mal consigo seguir o ritmo da menininha, passando por baixo de cercas e ao redor de bondes com seus chifrinhos de rena balançando na cabeça.

        Não tem mais ninguém na rua a não ser doentes da Peste do Sangue, e mais de um rosto desconfiado bate a porta ou fecha as cortinas quando passamos. Ficaria ofendido se não estivesse coberto pelo vômito da Wisty.

        Depois de uns 500 metros, a polícia está na nossa cola de novo, batendo seus cassetetes com tudo em barracas de feira abandonadas na rua e berrando todo tipo de xingamento pelas nossas costas. Mas as vítimas da peste são sempre maltratadas por eles e querem vingança. Eu me viro e vejo uma galera doente caindo de pau em cima de alguns soldados, e os gritos dos homens se abafam enquanto são arrastados para dentro de um bueiro.

        As pombas se assustam com os gritos cheios de medo que ecoam pelo beco, e logo não ouvimos mais os passos dos coturnos no asfalto. Muitos dos policiais estão voltando.

        Ou já foram contaminados.

        Esse labirinto cheio de curvas me deixa tonto. Wisty está ficando cada vez mais pesada. Mesmo com os policiais longe, Pearl continua seguindo em frente a toda a velocidade e, pelo jeito, correndo em círculos, como um cachorro que não desiste de perseguir um coelho.

        Quando estou prestes a reclamar e deixar essa menina para lá, ela se vira para trás e diz:

        — Aqui. — Ela aponta para o que parece uma pilha de entulho.

        — Hum, me desculpe ser direto assim, Pearl Marie, mas pelo jeito os bombardeios da Nova Ordem chegaram aqui antes.

        A menina suspira, como se eu a tivesse decepcionado completamente.

        — Você não é um bruxo de verdade, né? É aqui, ó, seu bocó!

        Sigo a menina e faço uma manobra para passar com a Wisty por uma entrada lateral estreita, que dá para um apartamento triste de um cômodo em um porão. Tenho de me agachar para passar pela porta. Quase não há luz ali, e cheira a naftalina e desinfetante.

        Pearl Marie larga a bolsa no chão e fica andando à minha volta.

        — Você pode largar a bruxa onde quiser — ela diz, como se minha irmã fosse um casaco ou um par de sapatos.

        — Cadê... o resto do pessoal? — noto os trapos de cobertor e roupa de cama que cobrem ochão. Está na cara que tem um monte de gente que mora ali há algum tempo.

        Pearl cai numa risada meio triste.

        — Ah, eles estão lá fora fazendo alguma coisa muito importante. Sabe como é: procurando por comida, coisas para salvar nossa família, e não brincando de abracadabra ou balançando a mão como se fosse sair um relâmpago do dedo.

        Estreito os olhos. Tudo bem que não estou com meus poderes em dia no momento, mas quem é essa pirralha?

        — Olhe, podemos ir embora agora mesmo...

        — Não! Fiquem. — Sua expressão fica mais amigável. — O pessoal vai chegar daqui a pouco.

        E tenho uma coisa para mostrar para você, passei o dia recolhendo. Eles me deram a tarefa mais importante de todas — diz ela, e abre um sorriso.

        Estou esperando ver comida ou cobertores ou dinheiro que ela poderia ter roubado de um imbecil da Nova Ordem para comprar remédio ou subornar soldados. Mas Pearl abriu a bolsa com tanto cuidado que, por um segundo, pensei que pudesse ser uma coisa importante de verdade, até mais importante que dinheiro, como um bebê ou um filhotinho de cachorro, sei lá. Mas são...

        Enfeites para o feriado? E pior: enfeites quebrados.

        Mas é claro. Agora o globo de neve faz sentido. E os chifrinhos de rena.

        — Eles não são... lindos? — Pearl pergunta com um suspiro, maravilhada. Tenho de admitir que são bonitos mesmo, de vidro brilhante espatifado e luzes coloridas quebradas.

        Estou perdendo a paciência. Os enfeites são legaizinhos e tal, mas parece que essa menina está tirando uma com a minha cara. Minha irmã está morrendo. Wisty se vira de um lado para o outro no chão, agarrando os cobertores com desespero, e Pearl continua com o olhar vidrado nas luzes quebradas, como se tivessem poderes secretos. Enfim, ela nota minha impaciência e coloca a bolsa no chão, com todo o cuidado, tira uns panos meio bolorentos e os molha num balde em posição estratégica para recolher a água das goteiras no teto.

        Pearl coloca uma compressa na testa da minha irmã. Seguro a barra enquanto Wisty geme:

        — Mãe, me deixa morrer. Por favor. Só me deixa morrer.

        — Ah, mas você vai — Pearl Marie responde baixinho. — Você vai.

Bruxos e Bruxas - O FogoWhere stories live. Discover now