Capitulo 7

36 1 1
                                    

Whit

        Acordo desorientado na escuridão fria e úmida, com o corpo doendo e sem conseguir enxergar minha irmã. Há figuras sombrias ao meu redor, mas não consigo ver quem são. Alguma coisa me atinge nas costelas, e eu fico de pé num pulo só, os músculos tensos, pronto para acabar com o que quer que seja aquilo. No milissegundo antes de eu me mover para atacar, ouço uma risada de hiena, aguda e tirando uma da minha cara.

        — Ooooh! — uma voz jovem e familiar me provoca. — Alguém está um pouco estressadinho logo cedo. Vamos, ô moleque bruxo, é hora de ir. — Consigo finalmente enxergar o cabelo de esfregão de Pearl Marie na escuridão, e o dia anterior me atinge como uma onda. Devo ter desmaiado em cima dessa pilha de panos sujos.

        — Hora de ir? Para onde? Ainda está escuro lá fora! — resmungo. Afinal, sendo um fugitivo e depois de correr do ser mais poderoso do Universo, assistir de novo à execução de nossos pais, carregar minha irmã à beira da morte por um labirinto de vítimas da peste e lobos treinados, é como se eu tivesse passado por um moedor de carne, física e emocionalmente. Acho que eu conseguiria dormir até o próximo Feriado.

        — Já passou da hora de reclamar. — Pearl Marie está agachada, fuçando entre os panos sujos. — Você está bom para trabalhar, né? — Aquela sargenta em miniatura começa a jogar uns lençóis na minha cabeça.

        — Bom, estou, mas...

        Um suéter devorado por traças voa pelo ar.

        — Você precisa — um chapéu atinge a minha barriga — fazer a sua parte, como todo mundo. Encontre um disfarce aí. — Abaixo a cabeça quando um cobertor esfarrapado quase acerta o meu nariz. Pearl se levanta e coloca as mãos na cintura. — Todo mundo conhece a sua cara idiota.

        — Mas e a Wisty? — protesto. — Não posso deixá-la...

        — Sem problemas. — Pearl dá de ombros. — Mama May me disse para ficar perto de casa e de olho nela.

        Fico mais tranquilo ao ouvir o nome de Mama May, me lembrando de como os Neederman estão se arriscando ao nos acolher, e como vão pagar caro se alguém um dia descobrir que estamos aqui. Eu devo isso a eles.

        Mesmo sem vontade, começo a fuçar nos panos sujos e cheios de crostas. Um minuto depois, já estou vestindo um disfarce que é um tipo de toga feita com um cobertor embolorado, um cachecol desfiado cobrindo meu rosto como uma máscara, e um chapéu gigante.

        — Ainda parece que sou eu?

        — Muito músculo e pouco cérebro? Aham, com certeza dá para perceber que é você aí embaixo — Pearl faz cara feia.

        Dou um suspiro frustrado. Antigamente era tão fácil. Eu conseguia morfar um pouco, me transformar num velho, num pássaro, em quase qualquer coisa que quisesse ser...

        “Espera um pouco aí. Tem alguma coisa diferente.” Pearl está me olhando como se não conseguisse acreditar, e sinto as coisas mudando: o formato do meu nariz, o comprimento do meu cabelo... será que isso aqui são covinhas? Pearl me passa um pedaço de vidro do Feriado para que eu veja meu reflexo.

        Estou chocado. Depois de dias sentindo meus poderes me abandonando, não acredito que finalmente funcionou! “Quem é o cara? O bruxo é o cara!”

        Enquanto isso, Pearl já está se dobrando ao meio de tanto rir.

        — Brandon Michael Hatfield? — ela dá uma roncada no meio da risada. — Sério?

        — O quê? — respondo, sem poder acreditar. — Você o conhece?

        — Brandon. Michael. Hatfield! — A voz de Pearl sobe uma oitava inteira. — Mas é claro que eu o conheço! — ela dá um gritinho. — Ele era o cara mais gato da antiga Terra Livre! O que eu não sabia é que você tinha a mente de uma pré-adolescente!

        A maioria das celebridades tinha sumido do mapa graças ao regime da N.O., porque representavam ídolos além do Único. Mas que mal tem usar o rostinho bonito de uns popstars que já desapareceram faz tempo? Além disso, já fui o menino do pôster tempo demais, e também já aguentei humilhações públicas por tempo demais. Talvez não seja tão ruim ter um rosto de quem todo mundo gosta, só para variar um pouco. Não gostou? Então, me processa.

        — Minha namorada curtia a música dele — explico, dando de ombros, fingindo que falar de Célia não me machuca bem lá no fundo. Pearl faz que sim com a cabeça, sem acreditar muito. — E olha só: é bem difícil arrumar uma nova identidade do nada, viu? Às vezes você precisa pegar uma emprestada, sabe? E esse Brendan-sei-lá-o-quê parecia uma opção tão boa quanto qualquer outra.

        — Brandon Michael Hatfield — ela me corrige, como se eu tivesse cometido um sacrilégio.

        — Tá, entendi. — Viro os olhos. — Bom, pelo menos funciona, né?

        Pearl faz que sim com a cabeça, ainda dando risadinhas, e então me empurra em direção à porta.

        — É melhor você ir.

        — Mas minha irmã... — vejo de relance o corpo frágil de Wisty do outro lado da sala, seu cabelo ruivo ensopado por causa da febre. Hoje ela está com uma aparência ainda pior.

        — Pode deixar que tomo conta dela para você. Vou conversar com ela e secar o suor de sua testa. Pode confiar em mim. Vou cuidar dela. — Pearl me dá um tapinha consolador na mão e me olha com seus olhos prateados e enormes, toda “palavra de escoteiro”. Começo a abrir um sorriso de gratidão, mas então ela termina a frase: — Pelo menos até ela morrer.

Bruxos e Bruxas - O FogoWhere stories live. Discover now