Wisty
Depois do jantar, Whit fica insistindo para irmos embora e deixarmos os Neederman para trás.
Meu queixo cai.
— Agora? Você está de brincadeira. É Dia do Banquete!
Ele morde o lábio.
— Wist, faz um tempo que você não sai de casa, não sabe como as coisas estão lá fora. Está cada vez mais perigoso.
Tem algo diferente na voz dele, não sei o que é. Ele não me olha nos olhos e começa a juntar nossas coisas.
— Bom, então deve estar cheio de guardas da N.O. perto daqui, né? Além do mais, ainda não estou recuperada da peste. — Tento parecer fraquinha. Usar minha experiência de quase morte é um pouco manipulador, mas é a real.
“Será que não podemos aproveitar esse restinho de tradição por mais um tempinho?”, meus olhos imploram para ele.
Whit dá uma bufada e se afasta. Sei que consegui pelo menos esse tempinho.
Mais tarde, enquanto os Neederman trocam presentes de Feriado, quase desejo que já tivéssemos saído dali para não nos intrometermos nesse momento tão íntimo da família. Whit e eu tentamos dar espaço a eles, recolhendo os pratos e arrumando a sala, mas é difícil não ficar encarando aqueles presentes feitos à mão com tanto carinho... bugigangas de metal que desenterraram enquanto procuravam comida; pedras polidas bem lisinhas; baquetas entalhadas a mão... Meu coração fica pequenininho com essa lembrança inesperada do presente que minha mãe um dia me deu.
Bem naquele momento, Pearl Marie vem correndo até nós, superempolgada. Ela está segurando um saco de lixo amarrado com barbante para cada um de nós. Pego o meu, erguendo a sobrancelha para Whit.
— O que vocês estão esperando? A queda da Nova Ordem? Abram logo! — Pearl dá um gritinho.
No fundo de cada saco de lixo gigante, há um único fio de plástico prateado, desses de enfeitar a casa no Feriado. Não sei muito bem o que fazer com ele, mas os olhos de Pearl brilham, na expectativa, e o rosto de Whit se ilumina. Eu não tinha visto meu irmão sorrir assim desde... bom, desde antes de sermos sequestrados.
— Valeu, menina. Isso significa muito para mim. — Pelo jeito que Whit está agindo, está na cara que esse fio brilhante é muito precioso para Pearl, e que deve ter sido muito difícil dá-lopara alguém.
— É, bom, é que eu achei que vocês precisassem de um pouco de brilho nessa cara feia — Pearl diz com a expressão séria.
— Venha aqui, espertinha! — Whit grita, pegando a menina e a jogando no ar. Pearl dá um grito que mais parece uma risada de hiena e, por um momento, sinto como se fôssemos todos uma família.
Família. De repente, fico com tanta saudade dos meus pais que quase sinto a presença deles na sala comigo. Não faz muito tempo que estávamos todos juntos, mas parece que faz uma eternidade que ouvi a voz deles pela última vez.Vozes que O Único silenciou para sempre.
Antes de eu virar o rosto, Mama May vê as lágrimas quentes e salgadas que correm por minhas bochechas. Seus braços fortes me envolvem num abraço acolhedor.
— Eu sei como é, querida. Está tudo mudando, e essa é a época mais difícil do ano. Tantas tradições perdidas, tantas pessoas mortas. Era uma época em que todo mundo se reunia e amava o próximo. Dá para acreditar que não conseguimos nem encontrar um lugar para ler as lendas do Feriado juntos? É uma verdadeira desgraça, é isso o que é.
Ela passa os dedos pelos meus cabelos enquanto fala, sem perceber, como já a vi fazer com seus filhos. Normalmente odeio que mexam no meu cabelo, mas sinto uma paz inacreditável em ter as mãos fortes dela na minha cabeça. Eu me sinto segura.
— Mas e o salão? Era lá que minha família sempre ouvia as leituras — digo, passando a mão pela trança que ela conseguiu fazer com meus fios embaraçados.
— Piorou bastante ultimamente — Hewitt explica, se aproximando com Whit. Ele traz um prato cheio de torta para cada um de nós. — Estão pegando de jeito qualquer um que acredite em outro poder além do dele. Depois que todas aquelas pessoas foram executadas na praça, mês passado, o salão está deserto.
Mama May faz que não com a cabeça e deixa sua torta de lado, intocada.
— Além disso, não dá para encontrar mais ninguém que diga algo contra ele, e muito menos gente a fim de rezar por dias melhores. — Os olhos dela ficam rasos d’água.
Pearl se agarra ao vestido simples da mãe.
— Não chore, Mama. Olhe o que Deus mandou para nós... só doença e morte. O Único é o único ser que tem o controle desse mundo.
Mama May quase engasga ao ouvir o nome proibido, mas Pearl continua.
— Vai saber. Talvez O Único seja Deus.
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Bruxos e Bruxas - O Fogo
Teen FictionVocê pensou que seria um conto de fadas? Whit e Wisty Allgood sacrificaram tudo para liderar a Resistência contra o regime sanguinário que governa o mundo. O líder supremo, O Único Que É O Único, baniu tudo o que havia de bom: livros, música, arte e...