Capitulo 5

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Whit

        Estou quase xingando Pearl Marie por toda essa crueldade quando a porta se abre com tudo e eu fico tenso, na defensiva.

        Mas esse pelotão não é da N.O. É uma família. Mal tenho tempo de piscar, Pearl Marie desaparece em um mar de abraços e alguém me segura pelo ombro e me vira para o outro lado.

        Um homem grisalho e mais velho me olha de cima a baixo e faz que não com a cabeça.

        — Mama May não vai gostar nada disso aqui — diz ele, com o rosto sério, mas percebo que seus olhos estão mais surpresos que zangados. Antes que eu pergunte quem é Mama May, ele vê Wisty no canto da sala, com a camisa coberta de sangue, e se arrepia.

        — Aquela é sua garota? Não está muito bem, né?

        — É minha irmã. — Faço que sim com a cabeça, sem saber se consigo dizer mais uma palavra sem cair no choro na frente desse cara. — Ela é corajosa.

        Rola um momento longo de silêncio entre nós que reforça como Wisty está passando mal.

        Tempo demais. Silêncio demais. Noto um grupo de mulheres do outro lado do cômodo, com o mesmo cabelo preto e escorrido da Pearl. Todas estão me olhando de lado e cochichando.

        “Elas nos odeiam”, penso. “Só estão esperando Wisty morrer para voltarem a se sentir um pouco mais seguras.”

        Estou quase começando a ficar com raiva desse homem, mas então ele segura minha mão bem forte e me olha intensamente.

        — Me chamo Hewitt. Se precisar de alguma coisa, é só pedir. — Ele olha para as mulheres nos encarando e dá uma risadinha. — Não se preocupe com elas. São paranoicas. Mama May vai dar um jeito nisso.

        Logo fico sabendo que Mama May é a mãe da Pearl Marie. No momento em que ela entra, o cômodo fica mais quente. Ela ocupa bastante espaço. Literalmente. Sua circunferência contrasta com o resto de sua família de pernas finas, mas ela tem uma presença forte. Sua risada alta e contagiante quase me faz acreditar que não estamos órfãos nesse mundo controlado por um psicopata com complexo de Deus. E eu quase acredito que estamos em casa.

        Mas, quando Mama May lança um olhar para Wisty e eu, seu rosto fica pálido e ela faz uma cara tão brava que fica parecendo uma garoupa gigante e muito decepcionada.

        — Pearl, querida, venha cá. Não sei se é uma boa ideia... — Mama May ergue uma sobrancelha na direção de Wisty. — Já perdemos tanta gente com a Peste do Sangue, e, como eles estão sendo procurados e tudo...

        Pearl faz uma cara tão inocente que quase parece que colocou uma máscara; é a expressão que só uma filha caçula consegue fazer.

        — Mama, por favor, deixe eles ficarem. Se fosse para pegarmos essa peste, já estaríamos todos doentes. E olha só para ela. Ela vai morrer logo, logo, mesmo.

        Noto que ela nem toca no assunto de que somos “procurados”.

        Pearl coloca a mão na cintura e olha para a mãe com olhos de cachorro pidão. Ela deve conseguir o que quer, mesmo com Mama May, e, antes mesmo de dizer “É o Feriado. Temos que fazer o que é certo”, já sei que Mama vai ceder.

        Meia hora depois, apesar de Mama May nos deixar ficar, a maior parte da família de Pearl ainda está nos encarando com uma hostilidade nervosa. Bom, na verdade, eles são como qualquer outra família que passou por tempos difíceis sob o regime da N.O.: têm rugas mais profundas no rosto por verem seus filhos sendo levados para prisões disciplinares; olheiras sob os olhos de noites e noites sem dormir, esperando pelos bombardeios; e, sem música, arte ou qualquer tipo de expressão no mundo, seus músculos não se lembram mais como é que se faz para sorrir. Mas há, também, um algo a mais. Eles estão morrendo de medo.

        São os olhos deles. Aquele cinza prateado é hipnotizante e exige responsabilidade; não consigo desviar o olhar. É como se estivessem sendo assombrados. Chamo Pearl de lado e faço um gesto na direção do pessoal.

        — O que está acontecendo? — pergunto. — Eles estão com medo de quê? Tá, eu sei que somos criminosos procurados, mas eles sabem que ninguém nem imagina que estamos aqui, né?

        Ela me encara cheia de coragem.

        — Como assim eles estão com medo de quê? Do que todo mundo na Superfície morre de medo? Não é porque vocês estão fugindo. É porque vocês já estiveram envolvidos com ele.

        — Com O Único? Mas por que ele faria... — Só quero dizer que com certeza os Neederman não são tão importantes assim para a Nova Ordem. Afinal, eles não fazem parte da Resistência.

        — Shhh! — ela sibila, com terror nos olhos. — Não dizemos esse nome nesta casa. — Ela pega meu braço e me arrasta para um canto, ainda mais longe dos outros, e pelo jeito o cochicho aumentou. — Nós somos quase os últimos que sobraram — Pearl diz, séria. Olho para ela sem entender, e ela aponta para as velas e imagens pelo cômodo, os sinais da devoção à sua religião.

        — Os únicos que ainda acreditam no Feriado e em tudo que essa data representa, os únicos que ainda têm fé — ela diz. — E tem espiões por todos os cantos.

        — Mas deve existir mais gente que ainda... pratica... — tento seguir com a conversa, pensando nas decorações ilegais do Feriado na praça pública, sinais claros de que outras famílias religiosas ainda estão resistindo.

        Ela faz que não com a cabeça.

        — Agora todo mundo só acredita nele. No começo, nos reuníamos num salão. Pensávamos que fosse seguro, que respeitariam aquele lugar sagrado. Mas acabamos nos tornando um alvo gigante. Ele mandou uns caras de confiança fazerem o trabalho sujo.

        Pearl parece hipnotizada, como se estivesse assistindo a tudo acontecer de novo, um filme que passava por seus olhos.

        — Um desses caras aprendeu um pouco da magia do mal dele. Ele queria colocar as mãos sobre nossas cabeças. Umas crianças foram direto para ele, pensando que seriam abençoadas, como antigamente. Fiquei para trás, mas meu irmão não, não Zig. Ziggy era inteligente, mas tinha mais fé que qualquer um de nós. — Pearl abre um sorriso amarelo, se lembra de tudo, e, então, sua expressão fica mais sombria. — E o homem mau não parava de sorrir e colocou a mão sobre a testa de Ziggy . Ziggy estava sorrindo também. E... e então o rosto do Ziggy... começou a... — ela engole em seco, seus olhos perdem o foco. — Derreter... começou aderreter. — Ela respira fundo. — E eu fiquei ali, gritando por causa do Ziggy, mas... alguém veio e me agarrou. E saímos correndo. Só me lembro disso.

        Quase não consigo falar, de tão horrorizado. Pearl está olhando para a frente, sua boca parece uma linha fina.

        — Mas agora você está aqui. Você está segura.

        Ela dá uma risada fria e sarcástica.

        — É. Segura...

        Olho para os rostos assustados, os olhos arregalados, e finalmente me cai a ficha. Eu sou um dos caras do mal, por causa do poder que tenho. Minha magia, aos olhos deles, me torna parecido com ele, independentemente de como eu a use.

        Hewitt se aproxima de nós e olha para o rosto cheio de raiva da Pearl. Ele ergue uma sobrancelha para mim, mas deixa para lá.

        — Toma — ele me dá uma vela meia-boca, feita de algum tipo de gordura. — Acendemos essas velas toda noite. Para os mortos. Vamos começar daqui a pouquinho.

        Quero perguntar mais coisas sobre Ziggy para Pearl e, principalmente, sobre o cara malvado que derrete rostos de crianças. Mas ela já está se levantando para se juntar à família em um grande círculo. E, com aquela expressão determinada, a boca tensa e amarrada num pequeno nó, está na cara que ela não vai dizer mais nada sobre o pobre Ziggy Neederman.

Bruxos e Bruxas - O FogoWhere stories live. Discover now