Passeio

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Afastei-me de Nightwolf, passando pelos seus braços, braços fortes que derrotaram Kano e o Dragão Negro e agora carregam a tribo sobre eles. Ele também, suavemente, passava as mãos pelos meus braços e me lançou um olhar tão profundo, que senti como se tivesse atravessado a minha alma. Antes, eu o via mesmo como o meu senhor, que estava pronto para me dar ordens, desde as mais simples até as mais bizarras. Mas eu podia dizer que naquele momento algo havia mudado de uma forma intrigante, se é isso que eu posso dizer. Desde quando um senhor conta o seu passado ao seu escravo? Principalmente um passado como esse? Acabei deixando escapar um sorriso e disse:

— Acho que estamos ultrapassando a relação escrava/senhor.

Nightwolf cruzou os braços, deu uma risada gostosa e falou, confirmando o que eu pensava:

— Sinceramente, eu nunca te vi como escrava. Disse apenas que você seria minha escrava para colocar uma nomenclatura. Digamos que seria uma forma de punir os de fora que possam transgredir nossas regras.

— Então, sou a primeira nisso? – perguntei colocando as mãos na cintura.

— Sim — disse ajeitando o seu colete — mas duvido que os Matoka vão aderir essa nova forma de punição.

— Tive sorte, então.

Em seguida, Nightwolf se levantou e me ajudou a me levantar dando-me uma das mãos. Consegui levantar com facilidade e ele me disse:

— Mas não pense que não serei duro com você na frente deles.

— Não se preocupe, isso será apenas entre nós — falei, piscando o olho.

Continuamos a caminhar ao redor da aldeia. Ele foi me mostrando e dizendo o nome das plantas e ervas importantes para a tribo. Contou algumas lendas de determinadas flores, me deixando encantada com todas aquelas histórias. Até que perguntei se eu podia contar a minha história.

— É um momento bem propício. — ele cruzou os braços e continuava caminhando ao meu lado — pode começar.

Então, comecei a narrativa da minha história, desde a morte de meus pais até o ponto de eu ser capturada pelos Matoka. Nightwolf ficou em silêncio por alguns instantes, logo após eu terminar de contar minhas peripécias. Acho que ele teria uma conclusão diante de tudo isso. Um conselho, um elogio, uma lamentação... Eu estava ansiosa para saber o que ele tinha para falar. Até que, de repente, ele rompeu o silêncio:

— A verdade é que você estava em busca de um caminho e achava no Dragão Negro o único.

— Sim — anui com a cabeça. — Eu tinha certeza que eu teria sucesso no roubo, só não esperava que tivesse alguém mais esperto que eu naquela noite.

Nightwolf riu e disse:

— Você tem um bom senso de humor.

— Eu tento.

Ficamos calados por alguns instantes e fiquei observando uma centopeia andando no tronco de uma das árvores.

— Eu ia comentar algo — ele disse, chamando minha atenção.

— Diga — falei, voltando meu olhar para ele.

O índio se voltou para mim.

— Acho que seu primo queria se livrar de você, pois nunca mandou alguém aqui para te resgatar.

— Eu percebi isso. Acho que sabia eu iria fracassar.

— Kabal sabe bem da segurança que temos para evitar tal roubo — ele disse, tirando algumas folhas presas em meus cabelos. — Eu não queria atiçar seus pensamentos com relação a isso.

— Não se preocupe, eu já desencanei.

Nightwolf só confirmou o que eu pensava a respeito de Kabal. Se ele ousasse aparecer aqui, acho que eu seria capaz de fazer uma bobagem com ele. A verdade mesmo é que eu não me importava mais com meu primo, principalmente depois de eu descobrir quantas barbaridades ele havia cometido naquela aldeia.

Ao voltarmos para a aldeia, senti um aperto no coração. Aquele passeio para mim fora um refrigério, e Nightwolf notou que fiquei um pouco tensa ao chegar à entrada da aldeia.

— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou.

— Como conviver em um lugar que todo mundo te odeia?

Ele se virou para mim e disse:

— Para mim, foi muito difícil conviver com os olhares tortos, principalmente com a culpa que estava sobre meus ombros, de ter aberto as portas ao Dragão Negro. Mas o Grande Espírito me usou como instrumento para salvar os Matoka. Pena que há alguns que ainda não reconhecem isso. Aprendi a ignorar essas pessoas. Tudo o que fazem comigo não anulou o que aconteceu naquele dia.

Dei um sorriso e falei sorrindo:

— Vou guardar isso em meu coração.


A tarde declinava, e eu conseguia ver as estrelas no céu. Aquela mistura de cores no céu me deixava encantada. Eu estava voltando do banho e pude sentir o aroma do jantar.Caminhei rápido e entrei na tenda. Fui logo em minha bolsa procurar um pente, achando-o comecei a pentear o meus cabelos. De repente, Raposa entrou segurando duas cuias, ambas expelindo fumaça.

— Trouxe para você — ela disse, sentando em um banquinho de madeira e colocando uma das cuias em cima da mesa. — Está uma delícia.

Fui até a mesa e peguei a minha cuia. Senti o cheiro e parecia estra uma delícia. Fiquei soprando o caldo até ficar numa temperatura boa e comecei a toma-lo

— Obrigada, Raposa.

— Por nada, querida. — ela tomou um gole do caldo — E a propósito, como foi o passeio com Nightwolf?

— Foi bem agradável, — me ajeitei na cadeira — ele me contou a história dele e... eu passei a entender o motivo de vocês me acolherem ao invés de...

Ela colocou a mão sobre meu antebraço.

— Meu filho só dá o que recebe — ela voltou na sua posição anterior. — Ele provou da misericórdia do Grande Espírito e passou a crer que todos, sem exceção, têm direito a uma segunda chance.

Tomei um gole do caldo e disse:

— Eu pedi perdão pela tentativa de roubo... — inclinei a cabeça — Preciso pedir perdão para cada um de vocês...

— Se você pediu a Nightwolf, tenha certeza que toda a aldeia perdoou, por mais que não pareça.

Senti meu coração em paz naquela hora e acreditei em suas palavras, mas eu também sentia que algo em mim estava mudando com relação ao que eu sentia por Nightwolf. Eu queria ficar mais próxima a ele, eu acordava e dormia pensando nele. Acho que acabei me apaixonando de verdade por Nightwolf. Comecei a rir sozinha pensando nisso.

Até que Raposa disse, me despertando do torpor:

— Você está sabendo da festa que faremos na próxima semana?

— Ah, Raposa! Sabe que não converso com muitos daqui.

Ela sentou mais próxima a mim.

— Vamos comemorar o renascimento de Nightwolf. Nós temos o costume de fazer isso todos os anos. Cada um já está preparando sua roupa especial.

— Mas onde vou conseguir uma roupa para mim?

— Não se preocupe, já estou cuidando disso.

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Estranhos PássarosOnde histórias criam vida. Descubra agora