O pressentimento

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E adeus caminhos vãos mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
Faminta, absconsa, imponderada cega!

— Cruz e Souza


A aldeia estava mais alegre, mais colorida com o retorno de Nightwolf. E minha vida mudou também, não apenas por nos tornarmos mais íntimos, mas o que eu sentia aquele amor havia se consolidado de uma maneira que não conseguiria mensurar em palavras. Há coisas nessa vida que precisamos sentir para saber como elas são em sua essência.

Os aldeões já notavam mais a nossa proximidade, mas nunca, nenhum aldeão veio até mim para perguntar algo do gênero, se estávamos namorando ou não. Nisso eles tinham um ponto positivo, não ficavam mexericando na vida alheia, como os vizinhos da minha tia faziam. Teria certeza que isso seria a pauta número um da conversa das comadres lá do bairro, que agora não era mais minha morada.

Eu podia notar em Nightwolf uma segurança maior, era nítida a alegria em seus olhos quando ficávamos juntos, em nossas conversas, principalmente em nossos passeios a cavalo, algo que gostava muito. Falo isso, pois Nightwolf conseguiu tirar o medo que eu tinha de cavalos. Eu admirava-os só de longe. Por diversas vezes Nightwolf tentara me fazer montar em um cavalo, colocava-me no mais manso e nada. Foi muita conversa e muita paciência para que eu, enfim, perdesse o medo.

Mesmo naquele momento, no qual Nightwolf estava mais presente na tribo, a minha curiosidade com relação a essas missões em que ele ia ainda pairava sobre minha cabeça. Sempre vinha a voz de Raposa em minha cabeça falando: "ele poderá lhe responder essa pergunta." E a coragem de perguntar a ele? Várias vezes eu ensaiei para perguntar, mas a coragem sempre ia embora.

Lembro-me em uma manhã, eu estava voltando com uma cesta de frutas para tentar fazer um doce. Estava quase para entrar na tenda quando vi Nightwolf conversando com sua mãe. Ele parecia que tentava convencê-la de algo. Sorrateiramente, me aproximei da entrada da tenda para ouvir a conversa.

— Mãe, já acabou! Provavelmente não precisarei ir mais para lá! — ouvi a sua voz tentando convencê-la.

— Não tente negar o seu pressentimento. — Raposa respondeu — E se Raiden lhe chamar?

Houve uma pausa e em seguida um choro contido, era de Nightwolf. Eu nunca o vi chorar. Não resisti e dei uma espiada. Deparei-me com Raposa sentada em sua cadeira com Nightwolf repousando a cabeça em seu colo. Ele tentava segurar o choro, mas não conseguia. Raposa acariciava os cabelos do filho com lágrimas nos olhos também. Aquilo me deu um nó na garganta e decidi sair antes que eu começasse a chorar também.

Enquanto eu me afastava da tenda, mais questões vieram à tona. Que pressentimento era esse? Quem era Raiden? Eu precisava de respostas e eu não entendia o porquê Nightwolf não fala nada para mim sobre isso. Acho que se eu fosse mais descabeçada, eu iria entrar com tudo naquela tenda e perguntaria: "Que palhaçada é essa? O que você tanto me esconde?". Ainda bem que eu estava mais sensata e assim não causaria mais dor do que eu já havia causado.

Com a cesta nas mãos, fui a passos lentos para a tenda de Puma, pois teríamos que fazer o doce juntas. Chegando à tenda, Puma estranhou eu ter entrado calada e com olhar cabisbaixo.

—Está tudo bem, Estrela?

Coloquei a cesta no chão e respondi sentando:

— Sim está. Por quê?

— Você está com uma cara...

— Acho que é o sol que está muito quente.

Puma apenas anuiu com a cabeça. Parece que se satisfez com que eu disse e começou a ver as frutas que colhi. Pensei seriamente em comentar com ela sobre o que tinha visto, mas resolvi guardar para mim. Acho que era algo entre Nightwolf e sua mãe. Ninguém deveria interferir, pelo menos não naquele momento.

— Você é boa para escolher frutas. — disse Puma limpando uma delas.

— Aprendi com vocês.

Ela riu e parecia que sentia um pouco de orgulho de mim. Continuamos caladas por alguns minutos até que tive a ideia de perguntar algo que eu deveria ter lhe perguntado há algum tempo. Eu sabia a história de Nightwolf por completo, mas eu precisava perguntar para alguém que não fosse Raposa.

— Como era Nightwolf antes de se tornar o que ele é hoje?

Puma parou um pouco o que estava fazendo, colocou o seu cabelo solto para trás e respondeu ainda com os olhos na fruta:

— É estranho. Eu tinha quinze anos quando tudo aquilo aconteceu. Ele era um rapaz estranho, acuado, muitas vezes era motivo de zombaria por ser fraco demais.

— Sério?

— Era desconjuntado, não fazia as coisas que pediam para ele direito, mas algo que eu admirava era que ele era muito esforçado. Raposa o protegia como podia contra as ofensas do pessoal. Até que ele começou a ir para a cidade... muitos diziam que ele começou a usar drogas. Nunca acreditei nisso.

— Estamos falando da mesma pessoa? — perguntei incrédula enquanto pegava uma faca para começar a cortar um dos frutos.

— Pois é. O que o Grande Espírito fez com ele foi uma grande transformação. O pai dele deve ter orgulho do filho que hoje ele tem, esteja onde ele estiver.

Havia se passado alguns dias, Nightwolf me convidou para um banho no rio à noite e assim fomos. Não éramos acostumados a fazer isso, mas no calor daquela experiência onde nos encontrávamos, era uma delícia. Mesmo assim, eu sentia que ele estava tenso. Fiz com que ele pudesse relaxar contando piadas e histórias engraçadas da minha vida. Entramos no rio e começamos a brincar na água, tirando barato um da cara do outro. Então vieram os beijos, abraços, carícias e ali mesmo fizemos amor. Depois deitamos na relva e ficamos admirando o céu estrelado.

Virei de bruços, olhei para ele e perguntei:

— Está tenso nesses últimos dias. Aconteceu alguma coisa?

Nightwolf respirou fundo, acariciou o meu rosto e disse sorrindo:

— Comandar uma aldeia não é fácil, minhas obrigações me fazem ficar assim.

Dei um beijo em seus lábios e falei:

— Vai ficar tudo bem.

De repente vi uma luz branca das roupas de Nightwolf.

— O que é aquilo? — perguntei atônita.

Ele se virou e levantou-se de sobressalto. Vestiu as calças, pegou uma espécie de medalhão de onde vinha à luz e disse:

— Já volto!

Em seguida ele foi para um lugar afastado, por entre algumas árvores. Desapontada, percebi que nosso passeio havia acabado, então comecei a me vestir. Em seguida sentei-me numa pedra para espera-lo. Ele estava demorando e aquilo começou a me preocupar de alguma forma. Estava prestes a voltar e ir ao seu encontro, quando percebi que ele estava voltando, parecia desnorteado.

— Está tudo bem? — perguntei aproximando-me dele.

Nigthwolf se agachou, pegou o colete, vestiu-o e respondeu com o olhar perdido:

— Sim.

Segurei a mão dele e a passos lentos pegamos o caminho de volta para a aldeia. Eu podia sentir que ele não estava bem e esse sentimento consumia o meu coração, me deixando preocupada. Ele começou a apertar minha mão com força, acabei olhando instintivamente para ele.

— Estrela. — ele falou meu nome olhando para frente.

— Pode falar.

Ele parou de caminhar, virouo-se para mim e disse com uma voz embargada:

— Eu vou morrer.

Estranhos PássarosOnde histórias criam vida. Descubra agora