Um tremendo sem vergonha

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Kabal me lançou um olhar como se quisesse perguntar se eu estava louca, mas continuei firme olhando para ele esperando uma resposta. Depois de alguns instantes ele voltou o seu olhar para a mercadoria e continuou a colocar as coisas da sacola na mesa. Meneava a cabeça como se quisesse rir do que eu acabara de perguntar. Confesso que me irritei por sua atitude, mas confesso que eu achava lindas as covinhas que se formavam quando ele sorria. Mesmo assim parei o que estava fazendo, coloquei as mãos na cintura e perguntei:

— Do que você ri?

— Ah Stella - soltou enquanto pegava dois copos de vidro - Você pergunta isso como se fosse uma vaga para recepcionista em um restaurante. O Dragão Negro é um clã, uma facção onde há todo o tipo de pessoas criminosas.

— Eu sei disso - falei me sentando e me servindo do suco que estava sobre a mesa — tenho pensado nisso faz um tempo.

— Quanto tempo, mais ou menos? - Kabal perguntou enquanto se sentava.

— Não sei exatamente - respondi enquanto colocava algumas fatias de salame no meu pão de forma - mas faz bastante tempo.

— Bem, a tia Leda me falou do que você aprontava na vizinhança. Confesso que fiquei impressionado quando ela me falou sobre o assalto. Como foi?

Quase me entalei com um pedaço de pão ao ouvir tal indagação. Tive que tomar uns goles de suco para descer. Assim que consegui recuperar o fôlego, respondi:

— Sinceramente daquele assalto eu não participei, mas o que eu mais fazia era praticar pequenos furtos pela região, mas nunca fui pega.

— Interessante — ele falou enquanto estava com um pedaço de pão na boca — Então para você o crime compensa?

— Sim — confirmei — não vejo outra forma.

A verdade era essa, acreditava nisso, pois fui criada nessa visão: A única saída para a pobreza era o crime.

Terminamos de comer sem Kabal falar mais nada. Acho que estava pensando no que poderia me dizer quanto a esse pedido que fiz. Se levantou e começou a recolher as coisas, calado. Engoli seco, com receio do que ele poderia me dizer. Me levantei e comecei a limpar os farelos de pão que caíra sobre a mesa, apenas para passar o tempo. Quando ele terminou de colocar a louça usada na pia para lavar, disse:

— Vou me encontrar com alguns companheiros do Dragão Negro e vou falar sobre o seu interesse. Quem sabe?

— Sério, Kabal? — perguntei esperançosa.

— Não é certeza, mas vou ver o que posso fazer por você.

— Obrigada priminho! — disse abraçando com o coração pulando de alegria.

Assim que Kabal saiu, decidi que iria tomar um banho. Eu estava muito cansada. Viajei praticamente o dia inteiro e sentia como se um caminhão tivesse passado por cima de mim. Fui para o banheiro, me despi e enquanto a água caía sobre o meu corpo, podia sentir o cansaço aos poucos ir embora. Depois que simplesmente fui embora, sem dizer pelo menos um adeus para Philip me senti um pouco estranha. Comecei a imaginar o que ele estava pensando. Pode ser que ele simplesmente sentiu que teve um livramento ou a saudade começou a aperta-lhe o coração. Fato é que ele me traindo ou não, eu teria que me livrar dele. Estranho eu falar isso, mas acho que isso que aconteceu, de certa maneira, fora um benefício.

Saí do banheiro, me sequei e peguei uma roupa mais fresca para me vestir. Comecei a secar os meus longos cabelos com a ajuda da toalha, caminhando para a janela para ver as primeiras estrelas surgirem naquele céu limpo. Penteei meus cabelos e deixei seca-los naturalmente, como sempre costumei fazer.

Sei que não era certo, mas como eu não tinha nada para fazer fui dar uma espiada no quarto de Kabal. Não tinha muita coisa interessante para mim. Vi apenas uma caixa com um monte de revistas pornô, umas espadas-gancho dele penduradas em forma de cruz na parede e ao lado um pequeno quadro dele quando era uma criança. Andei mais um pouco e vi uma foto caída próxima do pé de sua cama. Virei e era a foto de uma moça muito bonita, magra, com os cabelos a altura dos ombros e com uma mecha branca do lado esquerdo. Estava bem maquiada e com um sorriso brilhante no rosto, parecia até modelo daqueles comerciais de creme dental. Ao virar a foto novamente vi uma frase com uma letra de forma miúda escrita assim: Para um homem que mudou minha vida. Uau! Que frase profunda! O que será que meu priminho fez para aquela garota escrever palavras tão bonitas para ele? Resolvi deixar a foto no chão como estava.

Estava escuro e como Kabal ainda não voltava e a fome voltou a apertar. Procurei algo para comer na geladeira e tinha apenas algumas frutas e leite. Resolvi fazer uma vitamina com banana, maçã e leite. Enquanto eu tomava, fui assistir TV na única televisão que tinha na casa: no quarto de Kabal. Sentei numa poltrona que tinha ali e comecei a assistir. Era pouco provável que meu primo chegaria cedo então fiquei a vontade por ali. A programação era um pouco mais ampla naquele fim de mundo, dá para acreditar? Comecei a assistir um seriado que já tinha ouvido falar pelos meus amigos, mas o canal não pegava na minha antiga casa. A trama era tão envolvente que nem vi a hora passar. Fui acompanhando a programação daquele canal e só notei que era tarde quando olhei no meu relógio de pulso: 23:00. Eu não tinha ideia de que horas meu primo chegaria e como o sono veio resolvi desligar a TV e fui para o meu quartinho (já o considerava meu) e não demorei para cair no sono.

Acordei de sobressalto no meio da noite, não tinha ideia do horário, com o barulho de algumas risadas. Entre elas eu consegui distinguir a de Kabal, a outra era uma risada feminina. Eles iniciaram um assunto depravado, coisas que eu nunca tinha ouvido falar, mesmo não sendo mais virgem. Aqueles barulhos distintos começaram vindos do quarto. Certeza que Kabal havia esquecido que eu estava lá, não havia outra explicação. Que mulher escandalosa era aquela? Aquilo era para impressionar Kabal? Que coisa desagradável! Não tinha como dormir naquelas condições.

Levantei-me e fui beber um copo de água enquanto ouvia aqueles ruídos constrangedores. O pior que para ir para a cozinha eu tinha que passar na frente daquele quarto. E se eu te disser que a porta estava aberta? Sinto dizer, mas era constrangedor descrever o que eu estava vendo, deixo por conta da imaginação de vocês. A única coisa que eu podia falar é que aquela mulher não era a da foto.

Voltei para o meu quartinho bem devagar para não fazer nenhum barulho. Deitei no colchão forrado, coloquei o fone de ouvido e comecei a gastar o resto da pilha que tinha no meu walkman, ouvindo músicas que eu tinha gravado há algum tempo na única fita que eu tinha trazido, até o sono vir novamente. E ele veio.

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Estranhos PássarosOnde histórias criam vida. Descubra agora