03. Minha primeira impressão foi a de um mártir narcisista...

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Às cinco da manhã daquele dia, do mesmo modo que os anteriores, acordei, com a diferença de não ser em meu quarto. Estava em um quarto de hóspedes, mas era maior que o meu próprio, e melhor iluminado. Contudo, já sendo um conhecedor tanto do apartamento como de seu estilo de vida estupidamente luxuoso, um cômodo desses não foi surpresa de nenhuma maneira.

Na noite anterior, onde fui recebido com um "oi, seja bem-vindo, não toque nas minhas coisas, não entre no meu quarto, eu te odeio, não pense que vamos ser amigos", por alguém que fedia a vinho e cigarro, pude ter minhas primeiras impressões sobre Leoni Shipman que não fossem com base em vídeos ou recordações. Sobretudo, meus achismos variavam entre "sociopata depressivo" e "insuportável de se conviver".

Pelo meu próprio bem, espero estar errado.

Londres, Inglaterra, 01 de outubro de 2016
Primeiro dia vivendo com Leoni Shipman

Talvez ele seja um maníaco sexual.

Yakitori havia me ligado, curioso para saber o motivo do cardiologista ter convidado um completo estranho para morar junto a si. Fiquei impressionado por seu comentário, porque tinha imaginado algo muito diferente daquilo.

— Não, ele suspeitou de alguma coisa — disse eu ao celular. — Foi algum erro que eu cometi.

Você admitindo que comete erros?!

— Eu acho que ele é do tipo que "mantém seus amigos perto, e inimigos mais perto ainda".

Deixei meu novo quarto, aproveitando seu sono para olhar a casa mais livremente. Sempre fui alguém rígido com os horários e tinha minha hora de dormir, assim como acordava às cinco da manhã todos os dias, inclusive sem a necessidade de usar um despertador. Ainda não tinha tomado conhecimento dos hábitos do outro, mas julgava-o pelas olheiras como sendo alguém que dormia tarde — ou nem isso.

Seu apartamento era o cúmulo do clichê de jovem-rico. Espaçoso, mas recheado de móveis e objetos fúteis. Na sala de estar havia uma televisão enorme e aquilo me causou estranheza; ele certamente não tinha cara de quem assistia TV, ou de quem recebia visitas constantemente, o que me levou a acreditar que deve ter colocado algum design de interiores e simplesmente comprado tudo que sugerido, para não ter o trabalho de mobiliar.

— Ele não tem personalidade própria — disse eu ao celular. — Eu notei ontem, também. Por mais que ele seja chefe de um hospital inteiro, não sei... parece que ele vive preso à sombra de alguém, como se essa pessoa controlasse ele, de algum modo.

Só porque ele tem uma TV?

— Não é pela TV.

Também tinham coisas que não condiziam com seu aspecto relaxado. Por exemplo: suas roupas eram amassadas e velhas, e pouco comuns para seu cargo. Contudo, guardava objetos como vasos de plantas e de mármore, antiguidades até mesmo artísticas; pequenas esculturas, bandejas e cestas, bowls.... Inclusive, tinha uma mesa de sinuca tão aparente, que foi a primeira coisa que eu notara. Nada daquilo parecia ser seu, de alguma forma.

Mas, devo admitir que suas estantes enormes e lotadas de livros realmente me fascinaram. Tinha estantes de vidro com inúmeros prêmios de medicina e sua própria biblioteca particular, com tudo meticulosamente limpo e organizado. Além disso, também tinha aquele piano no centro da sala de estar, que, de longe, era meu móvel favorito na casa.

Que livros ele lê?

— Tem tanta coisa aqui... — Fiquei passeando por suas estantes, lendo os títulos. — Tem muita coisa antiga, dramas, clássicos... bastantes autores russos, também, e alguns em espanhol. Nem sei o que pensar sobre isso. Mas... ah, não — hesitei, vendo um livro em específico. — Essa não...

Por que ele mataria Anne Scott?Onde histórias criam vida. Descubra agora