02. Quem me ensinou isso foi ele.

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Confesso ter ficado imóvel enquanto encarava àqueles dois prédios enormes e espelhados, com uma fachada típica de hospitais e entrada para ambulâncias. Tinha um letreiro brilhoso, tão grande para como afirmar seu orgulho por ser considerado o maior Hospital e Instituto de Pesquisas Médicas da Europa, com letras vermelhas garrafais que expunha seu nome: Instituto Kylle & Claire Kitle.

Somente fechei meus olhos, inspirando profundamente. Era como se o peso de cinco anos de espera caísse sobre meu corpo de uma só vez, obrigando-me a voltar a encarar a realidade. Sabia que dali para frente não teria mais voltas. Tinha noção suficiente para saber que a hora de mudar de ideia seria aquela, caso eu sentisse que ainda não estava pronto, ou que nunca estaria.

Mesmo duvidoso, acabei por decidir entrar.

Londres, Inglaterra, 30 de setembro de 2016

Tinha tudo minuciosamente planejado. Desde que comecei a trabalhar como técnico em informática na Scotland Yard, tentei fazer amizade com inúmeros detetives. Além de precisar ter contatos na polícia para realizar meus objetivos, também tinha que praticar minha atuação para quando precisasse me transformar em alguém minimamente sociável.

Infelizmente, a realidade mostrou-se ser mais difícil que o esperado.

Aquele ano fatídico tinha apenas acabado de começar. Já estava descrente em conseguir algum amigo, quando ouvi uma detetive de cabelos loiros conversando no celular sobre sua irmã, que era médica. Estávamos os dois no refeitório da Polícia Investigativa Britânica, mas em mesas diferenças pela clara falta de proximidade. Ainda assim, lá estava eu, bisbilhotando. Desde que iniciei no budismo, passei a valorizar mais minha intuição.

Não deu em outra. Jessica Anders foi alguém crucial em meu plano de infiltrar-me na vida de Leoni Shipman. Desabafei dizendo que queria ir atrás do assassino de minha irmã, sabendo que ela era a caçula de uma médica e que aquilo poderia despertar traços de empatia em si. Não fui desgraçado o suficiente para contar-lhe que somente iniciei a conversa porque precisava de uma identidade falsa realista. Preferi, primeiro, trabalhar em nossa amizade por dois meses.

Quando, por fim, estávamos no começo de setembro, Jess buscou nos arquivos por algum morto com a minha idade. Teve a ideia, inclusive, de usar alguém que havia nascido em Yorkshire. Dessa maneira, eu poderia falar com um sotaque falso e ficaria mais difícil para Leoni Shipman reconhecer-me.

Meu único problema quando a detetive entregou-me a identidade de Peter Lewis, atualizada com a minha foto, foi que nela constava sua nacionalidade como sendo de West Yorkshire, e o sotaque que eu havia aprendido com minha família era do Norte. A diferença não era colossal devido à proximidade dos lugares, mas a região Oeste tinha uma fala mais delicada e culta, enquanto minha família falava de modo grosseiro e com mais regionalismos do que eu gostaria de admitir.

Yakitori não viu problema nenhum naquilo. Realmente, as chances de um médico saber diferenciar ambos sotaques eram poucas, e minha personagem de "menino rico" também justificaria uma fala menos esdrúxula.

Contudo, se eu somente precisasse da Scotland Yard para criar-me uma identidade, eu poderia ter evitado o desgaste e usado Yakitori. Não. Ter o apoio de uma detetive como Jess, muito inteligente e habilidosa, foi essencial para conseguir a primeira aproximação. Existia um truque muito famoso entre os detetives; uma técnica minunciosamente planejada para tornar possível qualquer um adentrar locais de alta segurança, e aquele fora o verdadeiro presente que tinha ganhado de Jess.

Como era de se esperar, o Instituto Kylle & Claire Kitle tinha câmeras por todos os lados. Meu objetivo era chamar a atenção do dono, e de preferência positivamente. A técnica de infiltração era baseada em estudos oftalmológicos sobre como o nosso cérebro evita captar imagens que não assume ser importantes, para poupar-nos do trabalho extra. Com um simples objeto de distração, pude passar pela recepção e pelos homens de preto sem precisar mostrar qualquer identificação.

Por que ele mataria Anne Scott?Onde histórias criam vida. Descubra agora