Fala à Comarca do Rio das Mortes

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Onde, o gado que pascia
e onde, os campos e onde, as searas?
Onde a maçã reluzente,
ao claro sol que a dourava?
Onde, as crespas águas finas,
cheias de antigas palavras?
Onde, o trigo? Onde, o centeio,
na planície devastada?
Onde, o girassol redondo
que nas cercas se inclinava?
Mesmo as pedras das montanhas
parecem podres e gastas.
As casas estão caindo,
muito tristes, abraçadas.
As cores estão chorando
suas paredes tão fracas
e as portas sem dobradiças,
e as janelas sem vidraças.
Já desprendidos do tempo,
assomam pelas sacadas
que oscilam soltas ao vento,
velhos de nublosas barbas.
Não se sabe se estão vivos,
ou se apenas são fantasmas.
Já são pessoas sem nome,
quase sem corpo nem alma.
As ruas vão-se arrastando,
extremamente cansadas,
com suas saias escuras
todas de lama, na barra.
Ai, que lenta morte, a sua,
lenta, deserta e humilhada...
(Um céu de azul silencioso
muito longe bate as asas.)
Onde os canteiros de flores
e as fontes que os refrescavam?
Onde, as donas que subiam,
para a missa, estas escadas?
Onde, os cavalos que vinham
por essas verdes estradas?
Onde, o Vigário Toledo
com seus vários camaradas?
E as cadeiras de cabiúna,
que se viam nesta sala?
E os seus brilhantes damascos,
de ramagens encarnadas?
Onde, as festas? Onde, os vinhos?
Onde, as temerárias falas?
“Qual de nós vai ser Rainha?”
“E qual de nós vai ser Papa?”
Onde, o brilho dos fagotes?
Onde, as famosas bravatas?
Onde, os lábios que sorriam?
Onde, os olhos que miravam
as pinturas destes tetos,
agora quase apagadas?
Dona Bárbara Heliodora,
falai!... (Quem vos escutara!)
Dizei-me, do Norte Estrela,
onde assistem vossas mágoas!
Vinde, coronéis, doutores,
com vossas finas casacas,
respirai! - que já vai longe
a vossa vida passada.
Falai de leis e de versos,
e de pastores da Arcádia! Mas que fizeram das mesas
onde outrora se jogava?
Livros de França e Inglaterra,
por onde será que os guardam?
Quem falou de povos livres?
Quem falou de gente escrava?
A Gazeta de Lisboa
pelo vento foi rasgada.
Cantai, pássaros da sombra,
sobre as esvaídas lavras!
Cantai, que a noite se apressa
pelas montanhas esparsas,
e acendem os vaga-lumes
suas leves luminárias,
para imponderáveis festas
nas solidões desdobradas.
Onde, ó santos, vossos olhos,
por esta igreja encantada,
com paredes de ouro puro
e longas franjas de lágrimas?
(Era de seda vermelha
o sobrecéu que o velava:
no seu catre com pinturas,
de cabeceira dourada,
dormia o Padre Toledo...
A mesma fonte cantava.
O céu tinha a mesma lua
- grande coroa de prata.
Há dois séculos dormia.
Há dois séculos sonhava...
Olhos de ler o Evangelho, pelas minas se alongavam;
mãos de tocar sacrifícios
desciam pelas gupiaras...
Rios de ouro e de diamante
de seus ombros deslizavam...
- Que era paulista soberbo,
paulista de grande raça,
mação, conforme o seu tempo,
e a alegoria pintara
das leis dos Cinco Sentidos
nos tetos de sua casa...
Dormia o Padre Toledo...
- Que negros vultos cortaram
seus grandes sonhos altivos,
quando neles cavalgava,
de cruz de Cristo no peito
e armas debaixo da capa?
Nos seus altares, os santos,
pensativos, o esperavam.)
Onde estão seus vastos sonhos,
ó cidade abandonada?
De onde vinham? Para onde iam?
Por onde foi que passaram?

Romance da inconfidência (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora