Romance XLIV ou da testemunha falsa

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Que importa quanto se diga?


Para livrar-me de algemas,


da sombra do calabouço,


dos escrivães e das penas,


do baraço e do pregão,


a meu pai acusaria.


Como vou pensar nos outros?


Não me aflijo por ninguém.


Que o remorso me persiga!


Suas tenazes secretas


não se comparam à roda,


à brasa, às cordas, aos ferros,


aos repuxões dos cavalos


que, mais do que as Majestades,


ordenarão seus Ministros,


com tanto poder que têm.


Não creio que a alma padeça


tanto quanto o corpo aberto,


com chumbo e enxofre a correrem


pelas chagas, nem consiga


o inferno inventar mais dores


do que os terrenos decretos


que o trono augusto sustêm.


Não sei bem de que se trata:


mas sei como se castiga.


Se querem que fale, falo;


e, mesmo sem ser preciso,


minto, suponho, asseguro...


É só saber que palavras


desejam de mim. - Se alguém
padecer, com tanta intriga,


que Deus desmanche os enredos


e o salve das conseqüências,


se for possível: mas, antes,


salvando-me a mim, também.


Talvez um dia se saibam


as verdades todas, puras.


Mas já serão coisas velhas,


muito do tempo passado...


Que me importa o que se diga


o que se diga, e de quem?


Por escrúpulos futuros,


não vou sofrer desde agora:


Quais são torpes? Quais, honrados?


As mentiras viram lenda.


E não é sempre a pureza


que se faz celebridade...


Há mais prêmios neste mundo


para o Mal que para o Bem.


Direi quanto me ordenarem:


o que soube e o que não soube...


Depois, de joelhos suplico


perdão para os meus pecados,


fecho meus olhos, esqueço..


- cai tudo em sombras, além...


Talvez Deus não me conforme.


Mas o Inferno ainda está longe,


- e a Morte já chega à praça,


já range, na Ouvidoria,


nas letras dos depoimentos,


e em cartas do Reino vem...


Vede como corre a tinta!


Assim correrá meu sangue...


Que os heróis chegam à glória
só depois de degolados.


Antes, recebem apenas


ou compaixão ou desdém.


Direi quanto for preciso,


tudo quanto me inocente...


Que alma tenho? Tenho corpo!


E o medo agarrou-me o peito...


E o medo me envolve e obriga...


- Todo coberto de medo,


juro, minto, afirmo, assino.


Condeno. (Mas estou salvo!)


Para mim, só é verdade


aquilo que me convém.

Romance da inconfidência (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora