Que importa quanto se diga?
Para livrar-me de algemas,
da sombra do calabouço,
dos escrivães e das penas,
do baraço e do pregão,
a meu pai acusaria.
Como vou pensar nos outros?
Não me aflijo por ninguém.
Que o remorso me persiga!
Suas tenazes secretas
não se comparam à roda,
à brasa, às cordas, aos ferros,
aos repuxões dos cavalos
que, mais do que as Majestades,
ordenarão seus Ministros,
com tanto poder que têm.
Não creio que a alma padeça
tanto quanto o corpo aberto,
com chumbo e enxofre a correrem
pelas chagas, nem consiga
o inferno inventar mais dores
do que os terrenos decretos
que o trono augusto sustêm.
Não sei bem de que se trata:
mas sei como se castiga.
Se querem que fale, falo;
e, mesmo sem ser preciso,
minto, suponho, asseguro...
É só saber que palavras
desejam de mim. - Se alguém
padecer, com tanta intriga,
que Deus desmanche os enredos
e o salve das conseqüências,
se for possível: mas, antes,
salvando-me a mim, também.
Talvez um dia se saibam
as verdades todas, puras.
Mas já serão coisas velhas,
muito do tempo passado...
Que me importa o que se diga
o que se diga, e de quem?
Por escrúpulos futuros,
não vou sofrer desde agora:
Quais são torpes? Quais, honrados?
As mentiras viram lenda.
E não é sempre a pureza
que se faz celebridade...
Há mais prêmios neste mundo
para o Mal que para o Bem.
Direi quanto me ordenarem:
o que soube e o que não soube...
Depois, de joelhos suplico
perdão para os meus pecados,
fecho meus olhos, esqueço..
- cai tudo em sombras, além...
Talvez Deus não me conforme.
Mas o Inferno ainda está longe,
- e a Morte já chega à praça,
já range, na Ouvidoria,
nas letras dos depoimentos,
e em cartas do Reino vem...
Vede como corre a tinta!
Assim correrá meu sangue...
Que os heróis chegam à glória
só depois de degolados.
Antes, recebem apenas
ou compaixão ou desdém.
Direi quanto for preciso,
tudo quanto me inocente...
Que alma tenho? Tenho corpo!
E o medo agarrou-me o peito...
E o medo me envolve e obriga...
- Todo coberto de medo,
juro, minto, afirmo, assino.
Condeno. (Mas estou salvo!)
Para mim, só é verdade
aquilo que me convém.
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Romance da inconfidência (Completo)
RomanceRomanceiro da Inconfidência é uma coletânea de poemas da escritora brasileira Cecília Meireles, publicada em 1953, que conta a História de Minas dos inícios da colonização no século XVII até a Inconfidência Mineira, revolta ocorrida em fins do sécul...