Romance LXVI ou de outros maldizentes

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A nau que leva ao degredo
apenas do porto larga,
já põem a pregão os trastes
que os desterrados deixaram.
- Que fica daquele poeta
Tomás Antônio Gonzaga?
- Somente este um par de esporas
um par de esporas de prata.
Por mais que se apure o peso,
não chega a quarenta oitavas!
(Nem terçados nem tesouras,
canivetes ou navalhas;
nada do ferro que corta,
nada do ferro que mata:
só as esporas que ensinam
o cavalo a abrir as asas...
Espelho? - para que rosto?
Relógio? - para que data?)
- Que fica, na fortaleza,
daquele poeta Gonzaga
- Um par de esporas, somente.
Um par de esporas de prata.
E Vossa Mercê repare
que outras há, mais bem lavradas!
- Pelos modos, me parece
- que lhe hão de fazer bem falta!
Dizem que tinha um cavalo
que Pégaso se chamava.
Não pisava neste mundo,
mas nos planaltos da Arcádia!
- Agora, agora veremos
como do cavalo salta!
- Entre pastores vivia,
à sombra da sua amada.
Ele dizia: “Marília!”
Ela: “Dirceu!” balbuciava...
- Já se ouviu mais tola história?
- Já se viu gente mais parva?
- Hoje não é mais nem sombra
dos amores que sonhava...
Anda longe, a pastorinha...
e agora já não se casa!
- Tanto amor, tanto desejo...
Desfez-se o fumo da fábula,
que isso de amores de poetas
são tudo aéreas palavras...
- Foi-se a monção da ventura,
chega o barco da desgraça.
Que deixa na fortaleza?
Um par de esporas de prata!
(Ai, línguas de maldizentes,
nos quatro cantos das praças!
Se mais deixasse, diriam
que eram roubos que deixava.
Ai, línguas, que sem fadiga
arquitetais coisas falsas!)
Tanta seda que vestira!
- Tanto verso que cantara!
- Maior que César se via...
- Mais que Alexandre, pensava...
- Escorregou-se-lhe a sela...
- Restam-lhe cavalos de água!
- Mais devagar, cavaleiro,
que vai dar contigo em África!
Puseram pregões agora,
vamos ver quem arremata.
- Quem compra este par de esporas
que eram do poeta Gonzaga?
- Já ninguém sonha ir tão longe,
que hoje são duras escarpas
esses caminhos de flores
de antigos campos da Arcádia...
- Só deixou na fortaleza
o par de esporas de prata!
- Quem sabe se alcança terra?
Quem sabe se desembarca?
Anda a peste das bexigas
até na gente fidalga...
- Pois ia dar leis ao mundo!
Era o que as leis fabricava!
E o par de esporas não chega
nem a 39 oitavas.
- Para tão longa carreira,
vê-se que eram coisa fraca...
- Já lá vai pelo mar fora,
lá vai, com toda a prosápia,
o ouvidor e libertino
desembargador peralta...
(Ai de ti que hoje te firmas
no arção das ondas salgadas.
Segura a rédea de espuma,
Tomás Antônio Gonzaga.
Escapaste aqui da forca
da forca e das línguas bravas;
vê se te livras das febres,
que se levantam nas vagas,
e vão seguindo o navio
com seus cintilantes miasmas...)

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