Romance LXXX ou do enterro de Bárbara Heliodora

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Nove padres vão rezando
- e com que tristeza rezam! -
atrás de um pequeno vulto,
mirrado corpo, que levam
pela nave, além das grades,
e ao pé do altar-mor enterram.
Dona Bárbara Heliodora,
tão altiva e tão cantada,
que foi Bueno e foi Silveira,
dama de tão alta casta
que em toda a terra das Minas
a ninguém se comparara,
lá vai para a fria campa,
já sem nome, voz nem peso,
entre palavras latinas,
velas brancas, panos negros,
- lá vai para as longas praias
do sobre-humano degredo.
Nove padres vão rezando...
(Dizei-me se ainda é preciso!...
Fundos calabouços frios
devoraram-lhe o marido.
Quatro punhais teve n'alma,
na sorte de cada filho.
E, conforme a cor da lua,
viram-na, exaltada e brava
falar às paredes mudas da casa desesperada,
invocar Reis e Rainhas,
clamar ás pedras de Ambaca.)
Ela era a Estrela do Norte,
ela era Bárbara, a bela...
(Secava-lhe a tosse o peito,
queimava-lhe a febre a testa.)
Agora, deitam-na, exausta,
num simples colchão de terra.
Nove padres vão rezando
sobre o seu pálido corpo.
E os vultos já se retiram,
e a pedra cobre-lhe o sono,
e os missais já estão fechados
e as velas secam seu choro.
Dona Bárbara Heliodora
toma vida noutros mundos.
Grita a amigos e parentes
quer saber de seus defuntos:
ronda igrejas e presídios,
fala aos santos mais obscuros.
Transparente de água e lua,
velha poeira em sonho de asa,
Dona Bárbara Heliodora
move seu débil fantasma
entre o túmulo e a memória:
mariposa na vidraça.
Nove padres já rezaram.
Já vão longe, os nove padres.
Uma porta vai rodando,
vão rodando grossas chaves.
Fica o silêncio pensando,
nessa pedra, além das grades.

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