Jéssica Sales estava atrasada, marcara a palestra para as seis horas da tarde e faltavam apenas quinze minutos. Ricardo havia prometido que não se atrasaria desta vez, mas parece que se esquecera de novo do compromisso. Ela suspirava, olhava pela janela da frente e suspirava novamente. Caminhava de um lado para o outro com seus saltos finos, marcando o assoalho lustrado da sala de estar.
Trabalhava há quinze anos na Universidade Federal de São Paulo, desde os tempos em que cursava a faculdade e tinha certeza de que agora fizera sua maior descoberta como pesquisadora, o que poderia facilmente ser seu passaporte de entrada na Academia Brasileira de Ciências. Sempre sonhara com esse momento, desde o colegial. Queria ser uma cientista e fazer fama, ajudar as pessoas a prever e intervir nos fenômenos naturais, como furacões e tsunamis. Pensara mesmo em estudar meteorologia, mas essa ideia excluiria por completo o espaço sideral e então ela perderia a oportunidade de tornar úteis, profissionalmente falando, todos os conhecimentos adquiridos com a sua falecida avó, que lhe ensinara muito sobre a lua, o sol e as estrelas. Não, ela não escolhera meteorologia.
Era astronomia sua vocação, sem dúvida. Conseguiu em pouco tempo tornar-se uma das melhores profissionais em sua área e chegou a participar ativamente das pesquisas que identificaram a presença de um novo planeta para o sistema solar, de órbita irregular, contrariando todas as probabilidades científicas.
Mesmo com toda a repercussão internacional, seu nome sequer chegou a ser mencionado. Seu professor Cornélio, coordenador do projeto, foi o único consagrado pela comunidade científica mundial.
— Como se ele tivesse feito tudo sozinho! — reclamava ela. Mas agora era sua vez, essa palestra seria o marco, o pontapé inicial para sua liberdade profissional! Teria seu próprio laboratório, seus próprios telescópios e por que não, seu satélite? Era muita pretensão da sua parte! Mas acontecesse o que acontecesse, ela jamais largaria a universidade, seu berço. Nunca se esqueceria de suas origens, de onde viera e por que escolhera essa difícil carreira. O som da freada brusca a desviou de seus pensamentos.
— Ricardo, está atrasado! Você tinha me prometido que chegaria cedo hoje!
Ricardo ouvia sua voz impaciente e ansiosa. Ela sabia que, dependendo de como se saísse na palestra de hoje, estaria consagrada ou arruinada. Os diretores da Academia estariam presentes, com o propósito de analisá-la para aceitar ou recusar o seu ingresso na comunidade científica. Inclusive Cornélio estaria presente. Ricardo a advertiu para que não o convidasse, mas Jéssica era teimosa e não havia argumento capaz de convencê-la.
Ricardo presenciara a ocasião em que foi feita a primeira divulgação sobre a descoberta do novo Planeta e lembra-se perfeitamente da decepção dela quando leu todos os méritos sendo atribuídos a Cornélio. Não que ela quisesse ser páreo para a competência e experiência do velho professor, com décadas de atuação, mas esperava que ao menos nas letrinhas miúdas seu nome aparecesse uma vez.
Era vingança que ela queria. Estava certa de que desta vez alcançaria a glória tão esperada e queria que Cornélio a visse, subindo os degraus da sua profissão pelos tapetes vermelhos da ciência. Ela fora a primeira! Não a única, mas a primeira e daí vinha toda a sua autoconfiança.
Infelizmente, Ricardo não confiava tanto assim na descoberta de Jéssica. Não fora tão surpreendente aos seus olhos, talvez por falta de conhecimento na área, porque Ricardo era um mero segurança do Museu Municipal. Amigo de infância, sempre fora apaixonado pela jovem cientista, mas com o passar do tempo, casou-se com outra e Jéssica passou a ser para ele apenas uma grande amiga, quase como uma irmã mais nova. Depois da perda da esposa no parto do primeiro filho, eles se reaproximaram e agora Ricardo era o companheiro inseparável que a carregava para todos os lados.
— Oh! Perdoe-me, pelo atraso!
— Onde você esteve, Ricardo? Eu o avisei de que precisaria chegar ao menos meia hora antes! Ainda tenho que preparar o material para as apresentações, nem ao menos passei no auditório antes, para testar a iluminação! Deus do céu!
— Eu sei, mas o trânsito está infernal! Fiquei horas preso no congestionamento. Parece que houve um acidente, havia muitos policiais, bombeiros... Acho que a coisa foi feia! A principal ficou interditada e tive que dar uma volta enorme. Acho que não chegaremos a tempo!
— Se corrermos ainda dará tempo, então, você dirige! — disse ela, atirando a chave do seu carro na direção de Ricardo, que a deixou cair no chão.
— Dessa vez quase peguei! — riu ele.
Obrigada por acompanhar! ;)
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2020 - A Revelação (Degustação)
General FictionA cientista Jéssica Salles não parava de remoer mágoas, ainda mais depois que a sua descoberta foi anunciada como mérito de seu ex-professor. Não era fácil admitir que a academia de ciências a ignorara. Apenas o padre Victor, escorraçado por Cornéli...