Tridente

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É tão interessante observar como que um único evento pode se fragmentar e ainda ser ele, se tornar cacos de um espelho aos olhos das pessoas que o vivenciou, e o tempo apenas faz fragmentar ainda mais o que resta da memória, mas ainda é o mesmo espelho, só que quebrado. Detalhes são deixados de lado, outros crescem e engolem metade da história, enquanto que outros detalhes são levados junto com quem se foi: em um campo de batalha, no quarto de uma torre há muito caída, uma fortaleza vermelha, no Norte e no Sul, perdidos para sempre naqueles que nunca se levantarão novamente para contar a (será mesmo?) verdade. E então eles se agarram nos vários lados dessa mesma história, nas canções, nos sussurros, nos que os olhos pensaram ter visto e no que os ouvidos não tem certeza que ouviram, mas, no final – na última linha do livro do meistre, no término da guerra, no último suspiro do soldado caído, na última agulhada da senhora que costura o vestido da boneca de sua filha enquanto lhe canta uma canção, na última colherada da sopa em uma muralha de gelo muito distante, todo mundo acaba escolhendo a história com a narração que lhe convêm, e então nada pode ser neutro e justo – nada disso importa, e a verdade é o que a verdade quiser ser.

***

Cascos de cavalos levantaram a água sangrenta que rodeava Robert Baratheon e Rhaegar Targaryen no Tridente. Robert suava dentro da armadura e elmo, respirando ofegante enquanto encontrava a melhor posição para atacar. O cavalo negro de Rhaegar girava para lá e para cá, tentando cercá-lo. O som de aço contra aço chegava às suas costas e na sua frente o elmo escuro do príncipe Dragão refletia sob a luz do sol. Robert pensou ter ouvido Rhaegar lhe chamar, mas não tinha certeza. Tentou lhe acertar um golpe com o martelo, mas ele se esquivou por pouco, puxando as rédeas do cavalo para a direita. Robert ouvira novamente a voz abafada pelo elmo: "Lhe direi onde Lyanna está", ele dissera. É mentira. Ele a matou, ou pior. Giravam na água vermelha, Robert sentia o seu cavalo respirando com dificuldade, cansado. "Ela espera...filho...seu filho." Rhaegar disse dentro do elmo. "...Torre da Alegria.", foi o que Robert conseguiu ouvir, em meio ao barulho de guerra. Um filho meu? Por que ele está fazendo isso? Ele quer me distrair.

Pararam bem perto um do outro, Robert podia ter lhe acertado o martelo embaixo do braço, mas ouviu Rhaegar dizer outra coisa "Lyanna está nas montanhas de Dorne...Vê-la quando a guerra terminar...Agora...Me mate...Agora!"

Ele quer que eu o mate? A loucura afetou os Targaryen nesse nível? Ou seria eu? Estaria eu delirando ou ele? Com certeza é ele que está delirando, mas o matarei. Não porque pede, mas porque desejo.

Os cavalos de ambos estavam muito próximos, com os dois fazendo círculos e suas armas batiam entre si. Robert podia ver os olhos púrpuras de Rhaegar, de alguma forma suplicando pelo martelo. Para provocar Robert, o príncipe percebeu uma brecha e deu um golpe na costela de Robert com a espada, que ficou irado e partiu para cima dele, com raiva demais para sentir o sangue escorrendo entre a armadura. Quando o golpe enfim chegou, rubis da armadura negra de Rhaegar voaram para cima e para a baixo. Houve tanta força que o cavalo do príncipe caiu, derrubando-o. Robert caiu junto, mas pode ver o elmo de Rhaegar amassar com a queda, e o visor cair na água. Seu olhar jazia morto, sem vida, em direção ao céu, sangue caia de sua boca e escorria pelo canto de seu rosto. Robert pensou ouvi-lo chamar Lyanna quando caiu, mas só podia ser o eco de seus próprios pensamentos, que o envolvia cada vez mais, até cair em um buraco escuro na mente que rapidamente o acolheu, tirando-o toda a consciência.

Ned Stark chegou em meio a batalha, em tempo suficiente para ver Robert dar o golpe de martelo em Rhaegar. Homens de ambos os lados corriam para o meio da água do tridente para procurar pelos rubis da armadura. O corpo de Rhaegar boiava no tridente, com água entrando em seus olhos púrpuras sem vida. Lealistas gritavam e três soldados correram para pegar seu cadáver, andando na força contrária da água que batia na altura dos joelhos, levando o corpo de Rhaegar com dificuldade para longe do exército que acompanhava Ned e que avançava para resgatar Robert com seu grave ferimento.

- Ned... – Robert disse, engasgando e tentando levar ar para o seu peito, meio acordado e meio inconsciente. – Lyanna... Ela...Rhaegar...

- Rhaegar está morto. – Ned disse, pensando que havia respondido uma pergunta não finalizada de Robert. Também pensou que deveria sentir alivio quando ouviu a frase saindo de sua boca, mas sentiu um grande peso nas costas, e de repente sua armadura pareceu ter o dobro do peso... – Poupe as palavras Robert, precisamos te levar para um meistre.

- Que os deuses carreguem suas palavras! – disse em fúria, se contorcendo com a dor. – Vá para a maldita Dorne. Mande alguém lá. – Robert tossiu, temendo sair sangue, mas sua garganta estava limpa e foi apenas seu ferimento que sangrou. – Inferno...Nas montanhas vermelhas, Ned. Mande alguém. Veja se Lyanna está lá...Ela...el... – E então o rosto de Ned sumiu, e a escuridão retornara, mas dessa vez Robert sentia que as trevas da inconsciência possuía um cheiro salgado, como uma brisa vinda do mar, e começou a ouvir as ondas, o peso da água batendo nas pedras, e lembrou de casa, de seu lar. De risadas, calor, e então tudo se dissipou para surgiu um deserto arenoso e vermelho, sem vida, e "Está tudo bem. Acabou. Não importa agora.", A voz na escuridão dissera, distante. "Está tudo bem." Ele conhecia essa voz muito bem, era a voz de Lyanna. "Ah Lya, estou morrendo, não estou?" A voz não o respondeu e, em vez disso, se transformou em um choro baixo, em seguida o choro aumentou e veio em uma respiração ofegante e um grito desesperado, um grito de

- Parto. – Robert disse em um sussurro e retomou a consciência aos poucos em cima de um cavalo, sendo chacoalhado em meio estrada arruinada pela guerra. – Onde estamos? O que está fazendo aqui seu idiota!

- Levando-o para um local seguro. – Ned respondeu com indiferença, estava na sua frente segurando as rédeas do cavalo e fazendo o possível para ir rápido no chão lamacento.

- Estou lhe dando o comando, volte para lá e acabe com o resto! Estou ordenando Ned, está me ouvindo!? – Robert gritava enquanto fazia caretas de dor segurando o ferimento, e Ned assentiu com a cabeça, sem olhar para trás. Parou bruscamente e deixou Robert em cima do cavalo, pegando outro de um dos três soldados que os acompanhavam.

- Consegue continuar? – Ned perguntou a ele, enquanto montava.

- Consigo. – Robert respondeu com dificuldade, e então Eddard Stark deu ordens para o soldado que agora guiava o cavalo e então Ned deu meia volta com o outro animal.

- Ned! – Robert gritou, tentou fazer com que o nome saísse em bom som, mas apenas lhe veio a rouquidão.

- Termine essa maldita rebelião, e traga Lyanna de volta, viva ou... – Sentiu uma dor insuportável, e já não sabia dizer se era pelo ferimento ou no coração.

- Terminarei. – Ned se bastou dizer, e então saiu a galope, levantando lama pela estrada.

Falsa PrimaveraOnde histórias criam vida. Descubra agora