Capítulo 2: Não sou filho de Sócrates, sou filho de Salomão

12 2 0
                                    

Dia normal. 

Acordei, a primeira coisa que eu faço é despentear o cabelo e me arrumar. Seis cordões, nove anéis, cinco pulseiras, duas tornozeleiras e um alargador na orelha esquerda.

Acho que está bom. Escolhi uma camiseta bem fofa, com um baphomet fofo na frente, escrito "cute as hell". Por que não?

Peguei a minha calça mais rasgada, com sete buracos em cada perna, e demorei quase que uma hora inteira pra poder vesti-la propriamente. Não sei se valeu a pena, mas que eu tava estiloso, eu tava.

Decidi comer alguma coisa. Peguei a mais vermelha das maçãs da feirinha, tive que sair correndo, mas a maçã estava perfeita. Meia hora depois, eu decidi voltar, peguei logo uma melancia.

As nove, voltei pro meu corsinha. 

Deitei um pouco na cama, coloquei o meu melhor lo-fi e comecei a viajar na música, analisando a figura do teto, onde tinha um baphomet gigantesco olhando fixamente pra qualquer um que dormisse nessa cama.

Pensei se o que eu estava fazendo era certo. Ora, o que eu deveria fazer então? Eu fui confirmado por DOIS Daemons diferentes, que ontem seria o dia que rolaria com a Helena.

Acho que não ouvi atentamente a Mama Udi.

Ela tinha dito algo sobre respeito e ingenuidade, mas eu tava cego por uma transa. 

Acho que esse foi o meu erro. Eu fui cego. Eu mexi com coisas sobrenaturais por causa de muié. Nossa, eu sou muito gado.

Será que eu deveria buscá-la? Helena deve ter escapado da cidade, tenho certeza, e o homem que a agarrou não deve mais estar entre a gente. E se eu fosse atrás dela, seria linchado e nem ouvido seria.

Não é por falta de motivo. É, não tem desculpa pra mim, eu fui ingênuo por mexer com espíritos, e mais ainda por envolver ela nisso. Bom, vida que segue, continuo sem a transa e agora com uma paranoia na cabeça. Meu Daimon se manteu calado durante toda a reflexão, até um certo ponto.

Quando eu disse bem alto:

-VOU FAZER TODOS OS DAIMONS PAGAREM POR ME ENGANAREM!

E agora eu tô certo. A culpa disso tudo é deles, não minha. E vou fazer eles pagarem. A culpa é deles.

Quando eu disse isso, ele se presenciou e disse:

-É bom tentar. Você me obedece. Eu te comando, e não o contrário. Me respeite, sou seu mestre.

Fingi obedecê-lo. Meus planos precisam que ele acredite nisso.

Decidi sair do carro de novo. 

Vou ao parque

Eu posso ser um goeta mas eu sou culto também.

Peguei o meu melhor livro, "Os Deuses de Neatas", do melhor autor da nossa geração. Tinha que saber o que acontecia com os quatro deuses.

Fiz uns sanduíches com a xepa da feira da cidade, roubei um guarda-sol da praia e fui pro tal parque como o Marechal: ouvindo música no meu head-fone de cabo gigantesco, descalço e de calça rasgada, segurando só um livro. No final, o guarda-sol quebrou. 

Meti a tupperware dos sanduíches no bolso entre a camiseta de baphomet e um casaco de couro que eu achei na rua.

Tava uma figura, próprio de um livro muito mal escrito.

Fui andando na beira da estrada. Me jogaram lixo, bituca de cigarro e resto de comida; fumei e comi.

Não tenho um simples problema, mas essa miséria de vida meio que já encheu o saco. Eu quero mudar, esse castigo, sem amigo, sem nada. Não tenho problema, e isso é o problema.

Mas logo eu cheguei no parque.

Escolhi a árvore mais velha pra recostar. Na pior das opções, eu fazia um crime ambiental e era preso. Tô no lucro. 

Sentei, coloquei no próximo lo-fi, o que eu tava ouvindo tinha acabado.

Abri o livro, tirei um sanduíche da tupperware verde e parei pra admirar os patinhos no lago do parque.

Esqueci o livro aberto na viagem que eu tive olhando os patinhos, que apareceu uma larva, um bixo gigante nojento e terrível bem na folha que eu tava.

Fiz um pequeno chilique, limpei, mas a página ficou toda nojenta.

Comecei a ler. Finalmente.

Me perdi na trama, realmente esse Júlio escreve muito bem. Quando vi, eu já tava em outro mundo.

Meu Daimon investiu

Totalmente envolto na história, meu Daimon me atacou.

Me fez dormir e me colocou no meu pior pesadelo.

Sem mais nem menos, ele queria brigar.

Se eu perco, ele me toma e eu viro um zumbi possuído, mas se eu ganho, ele fica fraco e eu posso tomar a ordem; fazer dele meu escravo, meu primeiro Daimon escravo, dos setenta e dois.

Eu tinha que brigar com ele, se não era tudo perdido. Caifaz não sabe brincar.

Entrei na briga.

Meu pior pesadelo sempre foi e sempre será, ser escravo. Obedecer, sem poder contrariar, sem ter escolha, sem opções, e fazer tudo sendo forçado, sem um pingo de humanidade, é com certeza o meu pesadelo.

Ele me colocou num pesadelo, onde todos os palhaços que me fizeram sofrer na vida me fazem de cachorrinho. Depois, Caifaz surgiria e pisaria na minha cara, me levando a mais um desmaio.

Acordo com uma dor horrível. Costas arranhadas até o osso, rosto fraturado. Mandíbula quebrada, mas a fome dos sanduíches é maior que a dor. Comi enquanto a figura caminhava, rindo, até mim, devagarinho. 

Mas eu não tava totalmente acordado. Um dia eu vi um vídeo no Youtube sobre sonhos lúcidos e eu aprendi que se a gente só vê coisas claras na nossa frente e bem perto, ainda estamos num sonho.

E era assim o mundo. Dos sete patinhos que nadavam felizes no lago, só tinham três.

Percebi e me vinguei.

Fiz o que se deve, peguei aquela larva nojenta e joguei na cara do Caifaz. Ele, beta, ficou todo com nojinho e não percebeu a porrada que vinha com a capa do livro.

Fiquei todo orgulhoso com o meu plano, mas não podia acabar assim.

Levantei e corri ao redor da árvore velha, até o lado oposto ao meu Daimon, um ser demoníaco (claro), mas robusto, e empurrei com toda a minha força que não consegue abrir uma lata de sardinha, a árvore pra cair em cima dele.

Caiu, milagrosamente, em cima dele, que fez os patinhos fofos se assustarem e saírem do lago e começarem a mordiscar o Caifaz.

Acho que eu ganhei.


Uma coletânea de flertes com o DemônioOnde histórias criam vida. Descubra agora