Diante do grito furioso, Alan recuou, evitando o contato visual com seu superior ao som das tosses de Saulo, e, ainda em silêncio, recolheu os documentos no chão. Em consecutivo, Fabrício largou o blazer, antes pendurado em seu antebraço, sobre a bancada. Encontrava-se sem saber o que dizer; aquela cena lhe pegou totalmente desprevenido.
— Essa bichinha veio cantar de galo pra cima de mim! Olha a bagunça que ele fez porque não deixei levar o carro!
Virando as costas para Alan, Fabrício se voltou ao outro, momento exato em que Saulo passou a alisar sua própria garganta, mantendo o foco nos próprios pés; ele não tinha a intenção de abrir a boca. Por mais que seu aborrecimento com praticamente todos os habitantes de Irazal continuasse fresco, a raiva havia perdido a energia. Não que estivesse arrependido pelas explosões, no entanto, tinha consciência de que irritar policiais não era nada conveniente.
— Aparentemente, hoje esse aí acordou doidinho pra levar umas porradas! — começou, Fabrício, inclinando a cabeça de leve para tentar achar o rosto do outro, onde pôde perceber um hematoma surgindo abaixo daquele olho. — Cadê o machão que me desrespeitou na frente do restaurante todo?! Olha pra mim, inferno! — O empurrão no ombro do estudante, o qual encostou suas costas na parede, também fez as esferas douradas subirem lentamente. Não por aversão; Saulo só não queria encarar o delegado, como se aquelas íris cinza passassem a ter alguma forma de domínio sobre ele. — Vou te explicar uma coisa, garoto. Não é por gostar de mim que as pessoas desta cidade me obedecem; elas me temem!
A expressão sem emoção no rosto de Saulo, manteve-se intacta.
— Não consigo sentir medo de você, desculpa.
Fabrício riu, coçando a discreta costeleta grisalha, enquanto Alan resmungava algo inaudível atrás do balcão. Saulo só não esperava que mãos fossem grudar em sua jaqueta escura e lhe prensar firme na parede; pares de olhos foram imediatamente ligados por uma linha invisível.
— Agora... serei obrigado a te surrar na frente deles, como sempre faço com quem não me respeita, senão vai aparecer outro pra me peitar, depois outro, e outro, e outro... Irazal é um ovo, um ovo onde ter uma arma é como ter um sapato. Eu sou um só, entendeu?! Não vou dar conta se seiscentas pessoas armadas resolverem fazer suas próprias leis!
Após o desabafo, o qual Saulo ouviu atentamente, Fabrício o soltou, pondo-se de costas a ele com ambas as mãos na nuca — a cabeça baixa fez parte da sua postura apreensiva. Alan, que já havia organizado os documentos na bancada, não entendeu o porquê daquela tensão. Surrar delinquentes nunca fora um problema para o delegado.
— Faz o que você quiser; só não me mata — Saulo se pronunciou; seu tom saíra diferente do normal. Mais fraco; rouco, e desta vez, não somente pelo resfriado. A culpa tinha relação com o aperto na garganta vindo de dentro para fora. Talvez o medo estivesse enfim surgido; não necessariamente pela possível surra. Era um medo de não sair mais daquela cidade e ter que conviver com aquelas pessoas pelo resto da vida. No mesmo segundo, viu Fabrício se virar para ele. — Sabe quantos dias estou aqui? Mais de uma semana. Mais de uma semana sem dar notícias aos meus pais... Mais de uma semana que não sei como e porque vim parar aqui! — Lágrimas mornas já rolavam em seu rosto; formando linhas iluminadas na pele escura e correndo pelo pescoço marcado. — Mais de uma semana sendo tratado igual um verme por você e por todos aqui! Quer dizer, só uma pessoa me vê como gente. Uma! — O silêncio foi iniciado, apesar disso, nenhum dos dois quebraram o contato visual. De um lado, cílios molhados destacavam olhos amarelos, do outro, sobrancelhas relaxadas davam ênfase nos globos cinza. — Por que vocês me odeiam?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Órbita do Destino - 2043 [COMPLETO]
Mystery / ThrillerLivro vencedor do prêmio The Wattys 2020 em Mistério e Suspense 💡 O ano é de 2043 e despertar misteriosamente em uma cidade desconhecida é o menor dos problemas de Saulo. Primeiro, esse estudante de Física precisa saber o que os números e a pomba b...