2. POR HONRA AO SANGUE

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No jantar, mal toco na comida. Quando eu era criança e não gostava da comida que serviam na escola, afastava todo o alimento para as bordas do prato, a fim de passar a impressão de que eu havia comido grande parte. Meu pai me observa de modo acolhedor enquanto repito a mesma atitude, porém não retribuo o gesto. A cada dia estou me aproximando da Classificatória.

Sally senta-se ao meu lado, devorando sua comida.

- Amanhã vai ser a nossa primeira avaliação. – ela fala, quando a olhamos de soslaio. – Eu tenho que estar bem alimentada.

- Olha, Sally. – meu pai diz. – Mesmo que o resultado da sua avaliação não seja o que você espera, não quero que fique triste.

- É – eu falo. –, até mesmo porque eu daria tudo para estar no seu lugar.

- Que tal se trocássemos de lugar? – diz Sally, rindo.

- Meninas, isso não é uma brincadeira. – diz meu pai, recolhendo os pratos e levando-os em direção à pia. – Há sistemas de identificação. Além do mais, se tornar um Híbrido não significa a pior coisa do mundo. Todos fizeram isso.

Depois de comer e lavar seu prato, Sally toma alguns analgésicos e sobe para dormir, torcendo para que esteja melhor amanhã. Eu não descartaria a possibilidade de que ela fosse em meu lugar, mas isso seria uma disseminação de vírus de gripe pelo mundo.

Quando termino de lavar meu prato, caminho para a sala de estar e observo o quadro de minha mãe pregado na parede. Ele foi pintado à mão por um amigo da família, que por sinal retratou bem seus traços. O cabelo ruivo, o brilho forte irradiando de seus olhos, as pequenas rugas no canto da boca, os cílios longos sombreando delicadamente as bochechas. Queria ser linda como ela foi.

Quando ela se casou com meu pai, era quatro anos mais velha que ele e deixou seu trabalho no centro científico no 1º Eixo para abrir uma biblioteca. Meu pai conta que foi muito difícil convencer os pais dela, que a expulsaram de casa por estar apaixonada por um Intermediário. Mas o que o amor não é capaz de fazer? Minha mãe veio morar com meu pai e alguns anos depois, engravidou.

Nesta época, a Grande Guerra se encontrava em seu ápice, o que fez com que houvesse uma revolução ideológica. Como consequência disso, algumas informações supostamente falsas a respeito de nosso governo foram publicadas anonimamente por todo o continente. Todos os livros foram proibidos por uma lei rígida e, durante um dos bombardeios, sua biblioteca foi incendiada. Minha mãe morreu neste dia.

Sally e eu éramos recém-nascidas e foi muito difícil conviver com o fato da perda durante tantos anos, portanto tento ser compreensiva com os queimados do centro. Meu pai desistiu do trabalho de editor e passou a ser um funcionário público. A biblioteca ainda se encontra fechada do outro lado da cidade, servindo de patrimônio histórico do país. Após ver seu estado, nunca mais tive coragem para visitá-la.

Removo o quadro e retiro a madeira, que na verdade é uma espécie de tampão para um fundo quadriculado. Pego um livro encadernado com couro avermelhado, que encontrei há alguns anos nos destroços da biblioteca.

Vasculho as páginas. Há algumas anotações no cabeçalho, além de frases marcadas com caneta esverdeada. Reprimo uma lágrima e me prendo nas letras.

- Tessa... – meu pai fala.

Fecho o livro e escondo-o atrás de mim em uma atitude ingênua, mas o fundo falso na parede me entrega.

- Pai... – minha voz soa cálida.

- É difícil aceitar as regras, não é? – ele diz.

Papai estende a mão e eu entrego o livro. Ele analisa, como se estivesse inspecionando ou confiscando uma arma.

- Você sabe que não podemos ter livros em casa. – ele diz.

- Eu sei, mas... Se nunca descobriram que ele estava aí, não descobririam agora... – eu hesito, mordendo o lábio inferior. – Descobririam?

Ele me abraça forte e beija minha testa. Afago suas costas, querendo me aconchegar a seu aperto.

- Vem cá, querida. – ele me leva ao sofá, enquanto se senta em uma poltrona de couro. – Você sabe que eles revistam tudo dos novos Híbridos. A casa. A família. Eles são cretinos.

- Eu sei. – digo. – Mas... É a única recordação que tenho dela. E mesmo que eu não possa levar comigo, sei que vai estar bem guardado.

- Tessa, você não deve se prender a alguém por um objeto. – meu pai fala, afagando as mãos. – Sua mãe te amava e tenho certeza que você a ama da mesma forma, mesmo não tendo a conhecido tão bem.

Comprimo os lábios e tento afundar a cabeça no sofá.

- São nossas qualidades que definem o que queremos que os outros guardem sobre nós. – ele diz.

- Pai... Você pode me contar como... Como você e a mamãe se conheceram?

Ele ri e fita seus olhos aos meus. De repente sou uma criança indefesa querendo ouvir histórias de amor dos meus pais. Papai ajusta as costas na poltrona, tentando buscar um início para a história. Sua voz é indiferente e seus olhos estão um pouco marejados.

- Bom... Quando eu me tornei um Híbrido, Suzanne era uma das avaliadoras. Ela trabalhava como cientista no 1º Eixo, com uma governante chamada... Celine Paschoal... É, nunca cheguei a conhecê-la, mas Suzanne sempre pareceu ser fiel a ela.

- Ela ainda é a governante? – pergunto, presa à história.

- Sim, mas ela é bem restrita. – ele adiciona. – São contadas as pessoas que viram seu rosto. Acho que ela teme algum ataque devido às leis duras que cria. Quando começamos a namorar, Suzanne disse que Celine a fez escolher entre o trabalho e o namoro. E ela escolheu a mim.

Sorrio, tentando avaliar sua coragem. Mamãe foi tão destemida em suas escolhas e eu nem mesmo consigo ficar tranquila com uma simples avaliação.

- Então nos casamos e ela abriu uma biblioteca, mas eu percebia que ela ainda era apaixonada pela ciência. – ele sorri, piscando ao relembrar. – Uma vez ela recebeu uma detenção por ter ajudado uma de suas amigas cientistas ao dar a composição do medicamento que seria fabricado.

- Detenção? – pergunto.

- É, a biblioteca ficou em risco de fechamento. – ele diz. – Mas Suzanne e eu então resolvemos que devíamos dedicar nossa vida à família e ao novo trabalho. Mas depois da Guerra... – percebo seu rosto se suavizar, como se algo estivesse apertando seu peito.

- Vocês se amavam muito, não é? – pergunto, franzindo o cenho.

- Até demais. Foi tão rápido... Foi alguns meses após vocês terem nascido e eu estava tão... impotente... Se eu estivesse com ela na hora... Mas eu estava cuidando de vocês... Pois vocês eram nossa maior prioridade. Vocês são a minha prioridade acima de qualquer coisa neste mundo. E toda vez que vejo você e Sally, me sinto mais próximo dela.

Levanto do sofá e o abraço. Afasto uma lágrima fina que escorre em sua bochecha e ele sorri, dispersando a nuvem de lembranças de sua mente.

- Eu sei que onde quer que ela esteja... – eu falo. – Ela vai torcer por mim. Por nós.

- Tessa, quero que me prometa uma coisa. – meu pai diz, levantando-se. – Prometa que dará o melhor de si e que vai obedecer às regras e que não vai se relacionar com outro Híbrido. Isto seria muito perigoso.

Sinto uma tensão em meus ombros e engulo em seco.

- Tudo bem. Eu prometo.

Papai me entrega o livro e mantém sua atenção em mim. Sei exatamente o que devo fazer e sei que será melhor desapegar de todas as coisas que me trazem sofrimento e angústia. Sorrio com seu aceno e respiro fundo.

Relutante, atiro o livro na lareira.

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