Quando volto a abrir os olhos, vejo apenas um borrão esbranquiçado. Minha cabeça ainda dói um pouco e meu corpo parece ter sido despedaçado. Aos poucos minha visão é reconstituída, iluminada pelas lâmpadas fluorescentes do teto.
- Tessa...? – uma voz suave ecoa.
Kim está em pé ao lado da cama, com Dimitri aninhado em seu ombro. Mesmo com eles aqui, sinto que um pedaço de mim ainda falta.
- O q-que aconteceu? – as palavras saem com dificuldade de minha boca. Sinto que meu olho esquerdo está inchado. – Eu n-não me lembro muito bem.
- Você caiu do elevador. – diz Dimitri, cauteloso.
- Ela não caiu. – Kim interfere. – Sabotaram o elevador. Gaia disse que todo o maquinário foi reparado várias vezes. Se eu não tivesse ido usar o elevador depois, não teríamos te socorrido.
Não quero saber. Não quero relembrar. Agradeço por estar com a memória um pouco vaga, pois a dor que sinto me traz algumas lufadas de lembranças. Em um instante eu estou no elevador e no outro, em uma enfermaria imensa. Eu nem sabia que a Sede tinha uma enfermaria.
- Quanto tempo eu fiquei aqui? – eu digo.
- Uma semana. – o comentário de Kim me faz estremecer.
- C-como assim uma semana? – eu digo, sentando-me na cama. Ainda há um pouco de dor em meus músculos, porém ignoro. – Eu não posso mais ficar aqui... O desafio coletivo...
- Não tem mais desafio coletivo para você. – diz Dimitri, me fazendo franzir o cenho. – Henry disse que não há mais tempo para treinar. Olha para você, está toda quebrada.
- Ah, obrigada. – eu disparo. – Isso ajuda muito.
- Desculpa – Dimitri adiciona. –, mas é que não há mais como você recuperar o tempo perdido. Tivemos aulas de direção, escalada e várias outras coisas.
- Uma semana é o suficiente para mim. – eu digo.
- Você não pode, Tessa. – diz Kim, afastando uma mecha para trás da orelha. – Sou sua amiga e não vou deixar que piore seu estado.
- Eu estou bem, Kim. – eu digo, engolindo em seco. – Por favor.
Kim fita o chão por um momento e em seguida mira seus olhos aos meus. Tenho medo de que consiga observar a dor dentro deles. Ver seu rosto me remete a Kol e a forma com que ele tem tentado se aproximar dela nos últimos dias. Na verdade, não lembro de vê-lo tentando conversar de maneira mais íntima com ela. Como se tivesse medo de arriscar alguma coisa a mais. Da mesma forma que eu tive medo de tentar algo a mais.
- Tudo bem. – ela diz, por fim. – A cada dia acredito mais que ninguém pode te domar.
Como uma fera radical, não posso ser domesticada, eu penso.
Quando meus amigos se despedem, Kol adentra a enfermaria. Sua expressão parece aflita, então tento não imaginar como ele deve estar encarando minha aparência agora.
- Oi. – ele me cumprimenta, como se nos víssemos pela primeira vez.
- Oi. – eu retruco, cálida.
- Mandaram eu te entregar isto. – Kol levanta uma marmita com sopa. – Vai ver que comida de hospital não é assim tão ruim.
Sorrio e Kol senta na beirada da cama. Noto que seus olhos percorrem a linha de minha testa até a bochecha.
- Devo estar horrível.
- Na verdade, nem tanto. – Kol ri. – Para quem despencou em um elevador, você até parece saudável.
- Esqueceu que os danos só nos atingem enquanto estamos em coma?
- Verdade – diz ele. –, caso contrário você já estaria a sete ou oito palmos do chão.
Engulo em seco e inspiro, sentindo uma fervura em meus pulmões.
- O que disseram sobe isso? A queda, eu digo.
- Que alguém sabotou o elevador para você cair. – ele diz. – Alguém que quer te ver fora do desafio coletivo.
- Brendolf? – falo o primeiro nome que vem à cabeça.
- Talvez sim – adiciona Kol. –, talvez não. Ele também está no desafio, portanto pode ser tão culpado quanto qualquer um.
- Temos muitos motivos para desconfiar dele. – eu falo, sentindo a raiva crescer em meu peito.
- É, e eu tenho mais motivos para te fazer comer isto. – ele ri, acenando para a marmita.
Pego a marmita e abro vagarosamente, sentindo uma leve fraqueza em meus dedos. Kol me entrega uma colher e vou colocando um pouco da sopa em minha boca. Sinto muita dificuldade e derramo um pouco em meu lábio inferior e na roupa.
- Que droga! – eu praguejo. – Pode pegar um guardanapo?
- Esqueci de dizer que aqui não tem guardanapos. Você está parecendo uma criança.
- E você é um idiota. – eu digo, entre dentes. – Será que poderia me ajudar com o lençol?
- Tudo bem. – Kol toma a marmita de minha mão. – Deixe que eu limpe.
Lentamente, Kol inclina o corpo para frente, mantendo seus olhos fixos aos meus. Seu rosto se aproxima do meu e posso sentir seu hálito quente e suave. Inspiro. Ele beija minha bochecha, onde provavelmente há uma cicatriz e desce com uma linha de beijos até meu pescoço.
Com o dedo indicador, Kol ergue o meu queixo, beijando-o até que nossos lábios se encontrem. Não sei o motivo, mas reajo. Permito que sua boca vasculhe a minha, a procura de algo incessante. Sua boca é suave e caridosa, fazendo-me sentir que ele está me doando algo inesperado. Ele toca minha cintura e eu afago seus cabelos até o momento em que nos afastamos.
- Pensei que você estivesse apaixonado por Kim. – eu digo.
- Me desculpe, Tessa. – diz Kol. – Eu realmente fui um idiota. Naquele dia, não sei o que aconteceu comigo. Eu... Eu só queria te fazer ciúmes. Eu nunca fui apaixonado por Kim e você demonstrava tudo o que Brooke nunca havia demonstrado antes.
- Ciúmes? – eu sibilo. – E aquela história de maior implicância que uma pessoa podia ter?
Kol desliza uma mecha de meu cabelo para trás.
- Você devia se ver quando está com ciúmes. – ele diz. – Fica engraçada.
Por um momento, tento imaginar se não estou sonhando. Na verdade, estou sonhando desde que permiti que Clarabelle baixasse aquela alavanca. Sempre senti que faltava algo em mim até que me encontrei em Kol. Ele é minha metade. Ele preenche o vazio em meu interior. Nunca quis parecer com uma daquelas garotinhas apaixonadas, mas sempre achei que o amor nos transforma, mesmo se não quisermos aceitar.
- Então, você me perdoa?
- Você não me perdoaria se eu não te perdoasse.
Rimos juntos, compartilhando um momento único. Kol me beija novamente, não se importando com minha aparência. Sempre me achei uma garota feia e desengonçada, mas aprendi que o que nos transforma é o momento. Se hoje sou indomável é porque um dia fui frágil. E não quero me sentir assim novamente.
- Você é linda. – ele diz.
- E você é um ótimo removedor de sopa. – é a última coisa que falo antes de me deparar beijando-o novamente.
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Indomável
ActionEm meio a um clima de ação, romance e mistério... Tessa Drummond nunca acreditou que pudesse ser indomável. Vivendo em um Brasil distópico, no ano 2172, Tessa deverá enfrentar desafios que exigirão muito mais daquilo que ela acredita ser capaz de co...