Acidente

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A neve começou a cair à tardinha da véspera de Natal, encantando as crianças. A princípio surgiram flocos leves e delicados, mas, à medida que a noite avançava, nuvens pesadas atravessaram as montanhas Pocono e descarregaram sua fúria sobre Conifer, uma cidadezinha da Pensilvânia. Quando os sinos das igrejas anunciaram a chegada do Natal à meia-noite, uma camada de quinze centímetros de neve cobria a cidade.

Dirigir no torvelinho de neve era difícil e perigoso para os motoristas mais alertas, e o cansaço tornava o percurso ainda mais angustiante para a Dra. Camila Cabello.

Aquele fora um dia longo para Camila. Às sete da manhã realizara a primeira de três cirurgias. Depois, atendera pacientes em seu consultório até as seis da tarde. Após deixar o consultório, correu para casa a fim de tomar um banho rápido e trocar de roupa, e saíra apressada outra vez para um jantar às sete e meia, num restaurante afastado, o favorito dos médicos e advogados do lugar. Embora Camila fosse um tanto solitária, seu companheiro de jantar, Shawn Mendes, desfrutava de grande prestígio naquele grupo seleto e na elite da cidade, por ser o único herdeiro de uma enorme fortuna.

Aquela noite devia ter sido agradável e relaxante para Camila. Era Natal, e a partir do dia seguinte entraria em férias por dez dias, e seu único compromisso era a ceia na casa dos pais de Shawn, uma companhia interessante e divertida. Mas aquele encontro havia sido diferente dos anteriores. O tom da conversa de Shawn de repente mudou de casual para sério.

— Receio que as condições da estrada vão piorar. — ele anunciou logo após Camila chegar ao restaurante. — Eu não devia ter deixado você dirigir até aqui. Poderia buscá-la em seu apartamento.

"Como não devia ter-me deixado dirigir? Quem Shawn acha que é para me impedir de qualquer coisa? Como é autoritário!", pensou Camila.

Entretanto, como não queria começar a noite com uma discussão, ela decidiu que não se incomodaria em ouvir as asneiras de Shawn.

— Quando formos embora, vou segui-la no meu carro... — Shawn continuara logo que sentaram. — Para me certificar de que chegou bem em casa!

— Não precisa Shawn. — ela respondeu, contendo a raiva.

— Mas Camila...

— Shawn, sou perfeitamente capaz de dirigir até minha casa. — Quando ele abriu a boca para contestar, Camila o distraiu: — Vamos tomar vinho?

Cavalheiro, Shawn se apressou a atendê-la, chamando o garçom. Camila esperou que passassem a noite discutindo as trivialidades habituais, mas logo se tornou óbvio que ele buscava um rumo diferente para a conversa, com um tom possessivo, deixando Camila apreensiva. Embora gostasse dele, não o amava. E, por escolha dela, não eram amantes. Apesar de gostar de sua companhia, Camila não se sentia inclinada a aprofundar o relacionamento, nem física nem emocionalmente.

Aos trinta e um anos, acostumada a ter liberdade e independência, Camila não tinha pressa alguma em mudar seu estilo de vida. Sucesso profissional e segurança financeira não lhe faltavam, e não procurava amor nem um caso. Naquele momento pretendia apenas um feriado repousante, não um esconde-esconde emocional.

Agora, à meia-noite e vinte de um dia de Natal repleto de neve, Camila percebeu que a última coisa que precisava era de um envolvimento com Shawn ou qualquer outro.

Segurando firme o volante, ela rangia os dentes e dirigia devagar pelas ruas vazias. Num cruzamento fez uma curva à direita com cuidado, e, no mesmo instante, se arrependeu da manobra que fizera. Ali, à sua frente, um "presente" nada agradável naquela madrugada de Natal: a visão desalentadora de duas radiopatrulhas atravessadas no meio da rua.

Uma batida à-toa ou um acidente grave? Camila imaginou, parando o carro a uma boa distância das viaturas. De qualquer maneira, poderia haver alguém ferido.

A indecisão a dominou. Devia seguir em frente, ir para casa, ou descer do carro e prestar socorro? Em menos de dez segundos ela decidiu. Camila era uma excelente e escrupulosa médica, e seus princípios apontavam apenas para uma opção: descer e ajudar. Era médica, ponto final. Passou a mão pelo cabelo castanho escuro caído até os ombros num gesto inconsciente, abriu a porta do carro e saiu ao vento cortante, levantando a gola do casaco comprido enquanto caminhava pela neve.

Contornando as viaturas, ela encarou o brilho dos faróis. A cena pouco iluminada não combinava nem um pouco com a época festiva, pensou, reconhecendo os quatro policiais uniformizados parados num semicírculo. O sorriso de saudação desapareceu ao perceber o corpo de uma mulher estirado na neve.

— Boa noite, Dra. Cabello — cumprimentou a patrulheira Normani Kordei, tocando o quepe com a mão enluvada.

Camila a cumprimentou com um gesto rápido de cabeça.

— Que aconteceu, Normani, atropelamento com fuga? — ela indagou, notando a ausência de outro carro na rua enquanto se aproximava do corpo.

— Não. — A expressão e o tom de Normani revelavam consternação. — Recebemos um chamado há quinze minutos de alguns moradores comunicando terem ouvido tiros de rifle. — Ela inclinou a cabeça. — Quando chegamos aqui, encontramos este corpo. E ela tem uma bala no peito.

Camila parou ao lado do corpo inerte na neve.

— Quem é ela?

— Não temos nenhuma ideia, não sabemos sobre nada... — Normani encolheu os ombros. — Já a revistamos, mas não encontramos nenhuma identificação. Encontramos apenas um relógio e uma insígnia, ambas com um aspecto velho, como antiguidades.

— Estranho. — Camila murmurou, desviando o olhar da policial para a vítima.

A mulher estava vestida de maneira estranha, ao estilo do Oeste, mas de um período antigo. Um chapéu de vaqueiro cinzento sobre a cabeça, com a aba larga lhe emoldurando o rosto e realçando os ângulos tensos de sua estrutura óssea. Ela possuía um nariz pequeno e fino, maçãs do rosto salientes e maxilar firme. O cabelo tinha uma aparência tão suja quanto o chapéu, embora os fios longos transmitissem a impressão de vitalidade, apesar da necessidade óbvia de uma boa lavagem com bastante xampu.

Uma mulher das montanhas? Camila imaginou, fitando o corpo imóvel com um ar profissional e arregalando os olhos em seguida, ao se deparar com um revólver no coldre amarrado à musculosa coxa direita. Uma caçadora? De qualquer forma, Camila sentiu tristeza. Era uma pena vê-la caída ali, tão frio e inerte. Aquela estranha havia sido uma mulher muito bonita e de aparência viril.

A observação lhe desapareceu da mente quando seu olhar encontrou a mancha, grande e vermelha, cobrindo a roupa antiquada sobre o busto largo. Uma sensação estranha, a mistura confusa de derrota e perda, se instalou em seu coração diante do ferimento aberto onde a bala entrara do lado direito do busto, perto do ombro largo. Camila não conhecia aquela mulher, mas sentiu uma vontade inexplicável de chorar pelo desperdício inútil de sua vida.


Viajante - Camren GpOnde histórias criam vida. Descubra agora