Capítulo 30. 🌲🌙🌲

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Meus pés afundavam no solo úmido da floresta enquanto eu corria selvagem e incontrolável, viva. A brisa da nova estação passava por mim, eu sentia a vida da floresta renascendo com mais vigor. Meu coração estava pulsando violentamente em meu peito e eu sorria inevitavelmente. Por onde eu passava, conseguia sentir a vida de cada ser desabrochar delicadamente e outras de uma maneira feroz.

Á noite aconteceria o Festival da Nova Lua e Colheita e eu precisava estar lá. Sentia falta de ver rostos humanos e de estar perto dela. Já fazia algumas semanas desde o nosso último encontro e quando o inverno se foi, decidi que precisava visitar o vilarejo, rever meus amigos, estar perto de minha mãe e Rivana. Ela havia me contado sobre esse festival certa vez e exigiu a minha presença, mas eu ainda temia ser vista com maus olhos por aquelas pessoas. No entanto, ela havia me garantido segurança e acolhimento e deixei que ela soubesse que para mim, o lugar mais seguro e acolhedor do mundo era em seus braços.

Enquanto o inverno durou, permaneci nas entranhas da floresta, entre seus outros filhos, mesma magia que corria em nossos corpos como se fosse o mesmo sangue. Eles queriam algo de mim, não exigiam, mas tinham as suas expectativas diante de tudo que aconteceu. O santuário estava destruído e a grande árvore não existia mais. Aquelas criaturas que habitavam o santuário ainda temiam a ideia de que não o teriam mais e pediram a mim que o restaurasse. Todavia, aquele lugar havia sido construído através de magia para que os que ali vivessem estivessem protegidos da Outra magia, de Fridr e dos homens. Eles não corriam mais esses riscos e eu queria estar ali para garantir isso e trazer-lhes a verdade: toda a floresta era o nosso lar e deveríamos habitá-la, preenchê-la com magia e vida até mesmo nos lugares mais remotos e assim, durante muitos dias e noites, estive acompanhando aqueles que sentiam medo de se mover por entre as árvores. Pequenos seres temiam ser esmagados, esquecidos e não queriam se perder, mas o chamado da floresta estava em seus corações e um a um, eu ajudei a cada ser encontrar uma nova jornada, sem medo ou qualquer repressão. Com o tempo, vi que era ali que eu precisava estar também, era onde meu coração se dissolvia com a luz branda de um sol aquecido da manhã, meu coração brilhava com o germinar de uma nova semente, uma nova árvore, o nascimento de uma nova criatura. Eu atendia aos chamados das criaturas, separava suas brigas por desentendimentos e ouvia o tempo todo as vozes das antigas árvores que estavam dentro de mim. Aquela magia me aquecia no frio, parecia mover meu corpo e iluminava as minhas cicatrizes.

Agora era o momento certo para que eu saísse da floresta ainda que ela jamais fosse sair de mim e de certa forma isso me confortava. Quando cheguei ao limite da floresta com o vilarejo, parei. Era quase noite e a lua estava cheia e dourada, dançando desnuda na escuridão do céu e sem nuvens. Ouvi batuques e sons de palmas e um arrepio tomou conta do meu corpo, insinuando que eu fazia parte daquela manifestação calorosa e humana. Deixei a floresta ainda receosa, lembrando das palavras que eu dizia para as criaturas que se comportavam daquela forma. Até que ponto eu me assemelhava a eles? Andei por trás de algumas casas iluminadas, ouvindo os risos de seus moradores, estavam felizes e ansiosos pela noite de comidas, danças e brincadeiras, bebidas e palmas incansáveis. Tentei me apegar a isso. Era a época em que Rivana e eu mais riamos juntas, podíamos nos embriagar escondidas sem que houvesse alguém implicando, pois todos estavam da mesma forma. Um gato em cima de um telhado saltou na minha frente, me fazendo reprimir meu grito de susto e os fios dourados que se acenderam sob a pele dos meus braços. Ele me encarou, indiferente à minha reação, lambeu uma pata e se distanciou desaparecendo na noite fresca. Olhei para mim mesma, descalça e com o mesmo vestido cheio de rasgos e pedaços de gravetos aqui e ali, meus braços um pouco sujos de terra e meu cabelo armado, endurecido e com cheiro de mato, alguns ramos de flores prendendo-o para não vir aos olhos. Continuei andando pelos quintais e avistei um varal com algumas poucas peças de roupas para secar. Eu só precisava de um vestido. E lá estava ele. Exagerado demais para uma noite de festival em que todos levantariam poeira dançando sem parar, mas eu daria um jeito. Arranquei-o dos prendedores e o joguei sobre a grama e comecei a puxar com a força que tinha todo o excesso de pano. Tirei o meu velho e surrado, ficando nua diante da lua e sua luz me iluminou como um corpo de prata, logo vi que a sujeira impregnada em meu corpo estava desaparecendo graças a ela, e agradeci. Quando pus o vestido roubado, me senti nova e ao mesmo tempo desconfortável. O espartilho era apertado demais e soltei-o. Seria muito provável que a dona estivesse no festival, mas torci para que o azar não colocasse seus olhos sobre mim justamente naquela noite. Ladra e bruxa! Eles diriam, uma completa selvagem. O vestido era azul aveludado e tinha mangas longas, mas eu as arranquei, estava arrastando cobrindo meus pés descalços. Pensei que um par de sapatos poderia me ajudar, mas aquela sensação de estar roubando algo de alguém já estava pesando sobre meus ombros. Quando decidi deixar de me esconder como um animal selvagem, saí para as ruas do vilarejo e fui tomada pelo calor que estava permeando por ali. Era da grande fogueira que chegava a ser mais alta do que muitas casas, homens trabalhavam nela durante dez dias cortando e empilhando a madeira, enchendo-a no meio com palha seca, meu pai era um desses homens e aquela lembrança veio até mim com o aroma do seu abraço. Saí das ruas, sendo vista por algumas pessoas que já se encaminhavam para o círculo da fogueira, algumas me olharam e comentaram, pois sabiam quem eu era e de onde estava vindo. Adentrei na casa de minha mãe, enfeitada com folhas secas e ramos de flores na porta. Ela estava bela e encarava a luz da fogueira grande pela janela, com uma mão sobre o peito.

Além da Floresta | Versão Wattys 2020Onde histórias criam vida. Descubra agora