37

4 0 0
                                    

Nas poucas vezes que meu pai falava sobre seu amor por minha mãe, terminava sempre dizendo: Yejide, oro ifé bi adanwo ni. Ele dizia essa frase como se fosse a única parte de tudo o que tinha dito que valia a pena lembrar. Eu tinha a impressão de que ele a considerava a lição que havia aprendido com a vida e a morte de minha mãe, a sabedoria que deveria me transmitir: Yejide, o amor é uma prova. Eu nunca entendi exatamente qual era o significado dessa frase. Nunca me dei o trabalho de perguntar a ele porque suspeitava que sua explicação envolveria as usuais descrições sobre o quanto minha mãe havia sofrido por minha causa. Na adolescência eu já era capaz de ignorar suas horríveis descrições sobre quanto sangue ela havia perdido, mas nunca superei a maneira como ele me olhava quando falava sobre a morte dela, como se estivesse me avaliando, tentando decidir se eu valia aquilo que ele tinha perdido. Ao longo dos anos, eu ouviria aquela frase muitas vezes de outras pessoas sem saber ao certo o que queriam dizer. Então, o amor é uma prova: mas em que sentido? Com que finalidade? E quem se submete à prova? Mas acho que eu realmente acreditava que o amor tinha o imenso poder de trazer à luz tudo o que havia de bom em nós, de nos aprimorar e nos revelar a melhor versão de nós mesmos. E, embora eu soubesse que Akin tinha me enganado,durante um tempo continuei a acreditar que ele me amava e que a única coisa que faltava era que fizesse a coisa certa, o que era justo. Eu achava que era apenas uma questão de tempo para ele me olhar nos olhos e me pedir desculpas.Então, esperei que ele viesse até mim.Quando Dotun entrou em nosso quarto logo depois que Sesan foi diagnosticado com anemia falciforme e me disse que sentia muito por Akin não ter encontrado uma solução para sua impotência, ficou óbvio que ele achava que eu já sabia que metade das viagens de Akin a Lagos era para se consultar com o urologista no Hospital Universitário. A verdade era que eu não sabia nada sobre o urologista, sobre as medicações prescritas ou sobre os procedimentos a que Akin havia se submetido. Mas naquela noite — porque, quando a vida zomba de nós,devemos rir também e fingir que estamos entrando na brincadeira —, assenti para Dotun e tentei agir como se tivesse sido inteligente o bastante para enxergar tudo sozinha. Mas ficou óbvio antes de ele sair do nosso quarto que Dotun também tinha percebido que meu casamento havia sido construído em cima de uma mentira.Apesar de tudo isso, eu estava convencida de que Akin me amava. E como o amor deveria ser a prova que trazia à tona o melhor de nós, eu disse a mim mesma que em breve meu marido viria até mim para se explicar. Canalizei toda a minha energia em manter meu filho vivo, mas o tempo todo eu estava esperando que Akin viesse até mim.Depois que me pegou na cama com seu irmão, tive certeza de que Akin ia me confrontar,me pedir desculpas, compartilhar comigo todo o sofrimento que tinha conseguido ocultar e me implorar para ficar com ele. Era difícil aceitar a ideia de que ele pretendia manter aquela mentira pelo resto de nossas vidas. Mesmo depois que saí do nosso quarto e parei de falar com ele, tive certeza de que sabia quem ele realmente era e acreditava que aquele homem ainda estava lá por baixo de toda a mentira e de todo o fingimento. O homem que eu achava que conhecia não era o tipo de pessoa que me deixaria ir para o túmulo enquanto continuava a me enganar.Em algum momento nas semanas que antecederam a primeira crise de anemia falciforme de Rotimi, aceitei finalmente que Akin teria passado o resto de nossa vida mentindo para mim se houvesse encontrado uma maneira de se safar. Enquanto dirigia para casa do Wesley Guild Hospital depois que Rotimi foi internada pela primeira vez, me perguntei como Akin podia ter me pedido para ficar com ela na enfermaria. Ele não via que eu estava cansada de todos aqueles médicos que ofereciam apenas más notícias, boas notícias, silêncios sombrios,garantias e uma mão no ombro para dar outras boas notícias, más notícias? De Olamide e Sesan até Rotimi, eu tinha me equilibrado à beira de um precipício, e agora estava tão exausta que queria apenas me deixar cair.Quando ela recebeu alta e eles voltaram para casa juntos, eu via Akin com outros olhos.Não o enxergava mais como alguém que tinha mudado, mas como um homem que nunca conheci. Eu duvidava do amor do qual um dia tivera tanta certeza e concluí que ele tinha se casado comigo porque achava que seria fácil me enganar.Uma semana antes das eleições presidenciais, decidi que era hora de confrontá-lo. Ele estava com Rotimi na sala de estar, assistindo ao debate entre os dois candidatos na televisão.Não vi motivo para esperar até o fim do debate para iniciar a conversa; afinal, eu tinha passado quase três anos esperando que ele viesse até mim. No fundo, sentia que precisava atacar quando ele menos esperasse, para não lhe dar espaço para inventar mentiras. Sentei-me em uma poltrona bem diante dele porque dali o veria bem. Eu queria observar as emoções surgindo em seu rosto e julgar sua reação à minha emboscada.— Então, Akin, é verdade que você não pode... que você não pode... Que você é impotente?Eu queria poder dizer que ele me respeitava o suficiente para responder à minha pergunta de forma direta quando finalmente o confrontei. Ele sorriu e recostou-se na cadeira até ficar olhando para o teto. Não disse nada por muito tempo.Esperei, assistindo enquanto Rotimi subia em seu colo. Na televisão, o moderador estava falando sobre o impacto na sociedade nigeriana da política de ajustes estruturais do FMI.— Quando Dotun disse isso a você? — perguntou ele por fim, puxando Rotimi para mais perto de si.— Um pouco antes de me contar que você pediu a ele para me seduzir.Não havia calor em nossas palavras — nenhuma paixão, nenhum ardor. Era como se estivéssemos falando da chuva que havia caído durante toda a manhã. Enquanto Akin cruzava e descruzava as pernas, pensei no caminho que tínhamos percorrido até ali, até estarmos sentados um de frente para o outro em nossa sala de estar, discutindo pela primeira vez sua impotência sem demonstrar grandes emoções.Pensei em Funmi. Lembrei-me de como Akin tinha certeza de que eu não estava grávida,mesmo antes de os médicos falarem em pseudociese. Akin apertou o nariz.— O que vai fazer agora?Eu quase sorri. Ele não tinha mudado tanto assim. Era quase reconfortante ver que ainda evitava a verdade respondendo às minhas perguntas com outras perguntas.— Você não respondeu minha pergunta — falei. — Akin, é verdade?Ele cobriu o rosto com as mãos como se não suportasse meu olhar. Não me comovi porque estava consumida pelo desejo de ouvi-lo confessar.— Akinyele, por que está cobrindo o rosto? Olhe para mim e responda minha pergunta.Não senti piedade dele quando deslizou as mãos do rosto e as colocou ao redor do pescoço como se quisesse se estrangular. Como poderia? Afinal, ele tinha sido capaz de me olhar nos olhos, durante o primeiro ano de nosso casamento, e me dizer que cada pênis era diferente,que alguns ficavam duros, e outros nunca ficavam. Falava com desenvoltura, introduzindo isso na conversa de forma a soar como uma das coisas que os homens diziam às suas esposas virgens sobre sexo. Fiquei chocada com o fato de ele não precisar nem ao menos contar mentiras para me enganar.— Yejide, por que quer que eu diga o que você já sabe?O que eu sabia? Eu sabia que um dia estivera tão enredada em suas mentiras quanto ele,provavelmente mais do que ele — imaginava que ele, ao menos para si, admitisse a verdade.Eu não pude fazer isso até Dotun me dizer todas aquelas coisas. Akin deveria ser o amor da minha vida. Antes de ter filhos, era ele que me salvava de estar sozinha no mundo; eu não podia admitir que ele tivesse defeitos. Então mordia a língua quando minhas clientes falavam de sexo e deixava que ele segurasse minha mão quando dizia ao médico que nossa vida sexual era absolutamente normal. Eu dizia a mim mesma que respeitava meu marido. Me convenci de que me calar significava que eu era uma boa esposa. Mas as maiores mentiras são na maioria das vezes as que contamos a nós mesmos. Eu mordia a língua porque não queria fazer perguntas. Não fazia perguntas porque não queria saber as respostas. Era cômodo acreditar que meu marido era digno de confiança; às vezes, confiar é mais fácil do que duvidar.— Sinto muito — disse ele, acariciando a cabeça de Rotimi. Naquele momento, soube que ele não ia responder diretamente minha pergunta, nem mesmo se eu tivesse pressionado um machado contra seu pescoço.— Você também enganou Funmi? — perguntei.Ele balançou a cabeça.— Ela não era como você.Suspirei.— Você quer dizer que ela não era idiota?— Quero dizer apenas que ela não era virgem.Eu não tinha mais nada para dizer a ele, então fiquei de pé e saí da sala. E ele não se preocupou nem ao menos em me pedir para manter segredo — já sabia que era o que eu ia fazer.*O clima de excitação pré-eleitoral que arrebatou o país me tomou mesmo contra a minha vontade. Nos dias que antecederam as eleições, eu me pegava cantarolando os jingles de campanha. Iya Bolu tinha me convencido a me registrar para votar. E, à medida que as eleições se aproximavam, fui tomada por uma insólita sensação de poder.No sábado em que fomos votar, Iya Bolu chegou à nossa casa às sete da manhã. Ela não parava quieta e me pedia o tempo todo para me apressar a fim de chegarmos à mesa de voto antes das oito. Akin já tinha ido até Roundabout para votar: ele havia se registrado lá porque ficava perto de seu escritório. Por volta das oito e meia, amarrei Rotimi às costas e partimos.Quando Iya Bolu e eu chegamos à mesa de votação, já havia centenas de pessoas lá.Depois de votar, nos sentamos à sombra de uma mangueira e falamos sobre o casamento da sua sobrinha enquanto esperávamos que os resultados fossem anunciados. A cerimônia seria dali a duas semanas, mas tínhamos planejado ir para Bauchi alguns dias antes do casamento. Iya Bolu queria estar por perto para ajudar a família de seu irmão com os preparativos.Quando os resultados de nossa sessão eleitoral foram anunciados por um funcionário cujos óculos cobriram metade de seu rosto, houve uma rodada de aplausos e várias pessoas gritaram "Parabéns, Nigéria". Envolvida pela euforia do momento, apertei a mão de estranhos como se tivéssemos sobrevivido a uma longa e árdua jornada juntos.*No dia em que parti para Bauchi, coloquei em Rotimi um vestido roxo sem mangas enquanto Akin arrumava o carro. Ele estava de férias e tinha decidido passar alguns dias em Lagos. Eu não perguntei por quê — não queria saber. O vestido de Rotimi tinha sido comprado por ele, porque achava que eu ia fazer uma festa para comemorar o aniversário dela. Claro que não houve festa, mas Rotimi gostava do vestido e toda vez que o usava,passava as mãozinhas sobre o corpete de renda e sorria.Naquela manhã, levei mais tempo do que de costume para vesti-la; estava irritada porque eu a acordara cedo para conseguirmos sair de casa antes das seis. Depois de convencê-la a vestir os sapatos, eu a sentei na penteadeira e apliquei pó compacto no rosto. Quando terminei, apliquei uma leve camada de talco em sua testa, e ela manteve o rosto completamente imóvel enquanto eu passava o pó sobre sua pele. Então me sentei em um banquinho e cobri meus lábios com batom rosa. Enquanto eu olhava no espelho para me certificar de que não tinha manchas de batom nos dentes, Rotimi inclinou-se para a frente e apertou o polegar contra o lábio superior. Observei enquanto ela levava a mão à boca,esperando que sugasse o polegar, mas em vez disso ela passou o dedo pelo lábio inferior,imitando a maneira como eu tinha passado batom.— Você é esperta, não é? — falei.Ela tocou minha boca para pegar um pouco de batom, seu dedo macio contra meu lábio inferior, a pressão tão leve quanto uma pena. Quando terminou de esfregar o polegar nos lábios, eu a coloquei no colo para que pudesse se olhar no espelho, mas ela mal olhou para si mesma. Virou-se até ficar de frente para mim, então inclinou a cabeça de um lado para o outro sob meu olhar, como se eu fosse o único espelho que importava.— Você é a mais bela de todas — falei para uma criança a quem eu nunca havia contado histórias. Histórias e canções me pareciam inúteis diante da doença contra a qual ela estava lutando,então eu não me dava o trabalho. Não queria contar histórias para ela, queria curá-la, queria salvá-la. E, enquanto ela apertava os lábios um contra o outro como eu tinha feito momentos antes, quis apertá-la contra mim até que de alguma forma ela voltasse para o meu útero, de onde poderia ressurgir com um novo genótipo, livre para sempre da ameaça constante da dor e da doença.Foi só quando Rotimi soltou um gemido que eu percebi que estava apertando seus ombros,ofegante. Eu a soltei. Era por isso que não me permitia ficar sozinha com ela por muito tempo — por causa dos pensamentos que me empurravam para o precipício, um poço sem fundo no qual eu me precipitava agitando braços e pernas. Lutei contra o súbito desejo de apoiar a cabeça na penteadeira e chorar. Respirei fundo e arrumei o colar de ouro ao redor do pescoço da minha filha.Levei Rotimi sentada em meus joelhos enquanto íamos de carro até o complexo onde havíamos morado para pegar Iya Bolu. Ela estava esperando na varanda com sua mala de viagem.— Já viu sua antiga casa? — disse ela, enquanto se acomodava no carro. — A nova família que se mudou para lá a destruiu. Está vendo como a tinta está descascando? Eles nem sequer se preocuparam em pintá-la novamente. E o homem, o homem é um cachorro excitado, vou lhe dizer.Em seguida, Akin dirigiu até Omi Asoro para pegar Linda, sua secretária. Ela também estava indo para Lagos naquela manhã, e Akin tinha oferecido uma carona. Quando chegamos à casa de Linda, ela colocou a cabeça para fora de uma janela e disse que estaria pronta em cinco minutos. Enquanto esperávamos, Akin ligou o rádio, tentando achar uma estação que estivesse transmitindo o noticiário. Nove dias já passavam desde a eleição e o vencedor ainda não tinha sido anunciado.— Está procurando atualizações sobre a questão eleitoral? — perguntou Iya Bolu a Akin.— É brincadeira, já faz quase duas semanas. E já é de novo segunda-feira. Como é possível que o tribunal tenha dado uma ordem para impedir a liberação dos resultados? Por quê?— Não se preocupe com isso. O tribunal não tem nada a ver com essa questão, e esse juiz sabe muito bem disso; apenas o tribunal eleitoral tem jurisdição.— Abi, esses soldados não querem deixar o poder, ní?— Mas tenho certeza de que os militares ainda vão entregar o poder — disse Akin. — Já foi gasto muito dinheiro nessa transição. Vamos jogar tudo no ralo?— Deus deveria ter piedade de nós — suspirou Iya Bolu. — Abi, nossos filhos vão crescer sob um governo militar?Assim que Linda entrou no carro, comecei a espirrar. Era como se ela tivesse esvaziado dois vidros de qualquer que fosse o perfume que estivesse usando naquela manhã. Akin desligou o ar-condicionado e abaixou os vidros.Quando chegamos ao terminal de ônibus, entreguei Rotimi a Linda.— Você não vai levá-la? — perguntou Iya Bolu, fechando a porta do carro e arrumando a saia. Balancei a cabeça e esperei que Akin abrisse o porta-malas. Ele pegou minha mala e nós duas o seguimos até a plataforma onde os ônibus estavam estacionados. No ônibus que ia para Bauchi já havia sete passageiros esperando. Akin entregou minha bolsa ao motorista e em seguida deu a volta no veículo. Examinou os pneus e deu uma olhada no volante, nos pedais e na caixa de marchas. Sempre fazia isso quando eu ia embarcar em um ônibus. Eu achava isso divertido quando namorávamos, mas naquela manhã me perguntei quais seriam seus verdadeiros motivos. Agora via com suspeita todas as suas ações, mesmo as mais simples, imaginando se haveria alguma grande mentira por trás delas.— Linda e eu estamos indo — disse ele enquanto eu embarcava no ônibus.— Boa viagem — falei, chegando para o lado para que Iya Bolu pudesse se acomodar .Akin e eu sempre éramos educados quando estávamos em público; às vezes, até fazíamos um esforço para parecer cordiais.— Eu ligo para você à noite — disse ele. — Iya Bolu, você disse que tudo bem se eu ligar para a casa do seu irmão depois das sete?— Sim, não há problema. Apenas diga à empregada com quem você quer falar.— Tudo bem então, boa viagem.

Fique ComigoOnde histórias criam vida. Descubra agora