Enquanto nos preparávamos para dormir em nossa primeira noite em Bauchi, Iya Bolu me passou uma pequena descompostura sobre como eu precisava me aprumar e cuidar de Rotimi. Ela estava diante do espelho da penteadeira, passando creme no pescoço e examinando uma espinha que nascera na ponta de seu nariz.— Eu tenho que lhe dizer a verdade, Iya Rotimi. O que você está fazendo não está certo. Oque essa criança fez para você? Nunca a vi brincar com ela, nem uma vez. Pense no Criador antes de tratá-la assim. Basta ver como a carrega no colo, longe do seu corpo. Isso não é bom. É por causa dessa coisa falciforme? Ah, mas nem sempre podemos dizer como vai ser o amanhã olhando apenas para o hoje. Seu papel como mãe é cuidar dela. Deixe que Deus decida se ela vai viver ou morrer. Não a mate antes do tempo em sua mente. Não faça isso.— Antes de chamar o caracol de fraco, amarre sua casa às costas e carregue-a por uma semana — falei. Eu achava curioso que Iya Bolu, que nunca vira uma de suas filhas deixar de respirar, pensasse que podia me dizer como viver minha vida. — Além disso, quando suas filhas tinham a idade dela, você não as deixava sozinhas engatinhando pelo corredor?Ela franziu a testa e passou creme no rosto.— Você acha que pode me calar me insultando. Eu só acho que você precisa parar de punir Rotimi pela morte de... dos outros.— Eles se chamavam Olamide e Sesan. E não estou insultando você. Abi, não as deixava no corredor?Iya Bolu se levantou e foi sentar-se na cama.— Pelo menos eu as alimentava quando tinham fome e as abraçava quando choravam. Iya Rotimi, não estou tentando cutucar sua ferida. Só estou dizendo que ela não tem outra mãe e que, por enquanto, é a única filha que você tem.Eu não estava punindo Rotimi por nada. Simplesmente não acreditava que ela fosse viver tempo suficiente para se lembrar do que eu fazia ou deixava de fazer. Achava que era uma questão de tempo antes que ela seguisse o caminho de meus outros filhos e estava me preparando, me habituando a não ter mais filhos. Sempre que pensava nisso, tudo o que desejava era que ela não sofresse muito. Eu não a segurava muito perto de mim porque estava me protegendo dela. Tinha perdido pedaços de mim mesma com Sesan e Olamide, e me mantinha afastada de Rotimi porque queria que me restasse algo depois que ela morresse.— Por que pediu à empregada para mentir para seu marido e dizer que já estávamos dormindo? Está brigada com ele?— Nem mesmo a língua e os dentes podem conviver sem brigar.— Iya Rotimi, estou farta de todos esses provérbios. Boa noite, o jare. Ela virou as costas para mim e puxou as cobertas sobre a cabeça.*Na quinta-feira, eu estava sozinha na casa com a empregada. O irmão de Iya Bolu e sua esposa tinham saído para trabalhar e Iya Bolu tinha ido ao mercado comprar presentes para suas filhas. A futura noiva, professora da Universidade de Jos, devia chegar naquela noite.Eu estava lendo um jornal velho quando a empregada entrou na sala e me disse que havia uma ligação de Lagos.— Avisei para dizer a ele que estou ocupada.— Ele disse que precisa falar com você, senhora. Falou que sua filha está doente.Larguei o jornal e fui até a sala de estar.— Yejide — disse Akin quando atendi o telefone. — Rotimi está inconsciente.Desabei sobre a cadeira. Antes daquele dia, achei que estava preparada, afastada o bastante, física e emocionalmente, para receber a notícia de que Rotimi estava morta ou prestes a morrer. Mas o que sabemos sobre nós mesmos? Realmente sabemos como vamos reagir a uma situação até que ela se apresente? Desde o dia em que ela nascera, eu estava me preparando para o pior, mas uma vida inteira não seria suficiente para me preparar para a vertigem que me atingiu.— Você tem que levá-la para o hospital — falei.— Eles estão atirando nas ruas, Yejide. Os soldados estão aqui. Eles estão atirando,atirando nas pessoas. Ela simplesmente parou de chorar de repente. Então eu... então tentei acordá-la, mas ela não respondeu. Mas ainda está respirando, ainda está respirando.— Você tem que levá-la para o hospital.— Você sabe se existe alguma coisa que eu possa fazer? Qualquer coisa que eu possa fazer agora? Yejide? Yejide? Você está aí? O que devo fazer agora?— Você tem que levá-la para o hospital.— Diga qualquer outra coisa. Tenho certeza de que já mataram pessoas; nós poderíamos ser baleados. Tem alguma coisa que eu possa fazer? Yejide? Você sabe de algo? Eles lhe ensinaram algum procedimento de emergência para Sesan? Yejide?Eu podia ver o que restava da vida de Rotimi se esgotando diante de mim.— Não vou voltar para você.— O que está dizendo?— Não vou voltar para Ilesa. Não vou voltar para você.— O que está dizendo? Ouça, preciso ir. Ligo para você à noite para dizer se... se... para lhe dizer.Fiquei sentada naquela sala de estar estranha, segurando o telefone em meu ouvido muito depois que a ligação havia terminado. Uma boa mãe aguardaria o inevitável telefonema,voltaria para Ilesa para receber as visitas, aceitaria as mensagens de condolências com grande sofrimento, desempenharia seu papel de mãe de Rotimi mesmo que ela tivesse morrido.Depois de ter feito tudo isso, só então eu poderia deixar meu marido. Mas eu estava cansada e não havia mais nada em Ilesa para mim. Havia o salão, mas isso não bastava para me levar de volta para a mesma cidade onde vivia Akin. Não suportava a ideia de passar mais uma vez diante do Wesley Guild Hospital ou de ver crianças vestidas com o mesmo uniforme escolar que Sesan tinha usado quando era vivo. Então fiz o que eu realmente queria fazer.Bebi dois copos de água e entrei no quarto que estava compartilhando com Iya Bolu. Peguei apenas a minha bolsa de mão. Dentro dela estavam todas as coisas de que eu precisava: meu talão de cheques, uma caneta, um caderno, todo o dinheiro que levara para Bauchi e a única foto que tinha da minha mãe. Deixei um bilhete sobre a cama de Iya Bolu. Tive certeza de que sua cunhada o leria e explicaria que eu não ia mais voltar.Fui até a rua e fiz sinal para um táxi que ia na direção do terminal de ônibus. Lágrimas embaçavam minha visão quando entrei no carro e quase tropecei. Admiti para mim mesma,então, que tinha falhado: Rotimi também levara uma parte de mim. Enquanto saía do táxi e secava as lágrimas para poder ler as placas que indicavam para onde cada ônibus estava indo,soube que nunca esqueceria Rotimi, nunca conseguiria apagá-la como tinha desejado.Embarquei em um ônibus que ia para Jos. Jos porque eu tinha ouvido que era a cidade mais bonita da Nigéria e sempre tive vontade de ir para lá. Levaria um tempo para eu me dar conta de que cada um de meus filhos tinha me dado tanto quanto tinha levado. Minhas lembranças deles, agridoces e constantes, eram tão poderosas quanto uma presença física. E, por isso,enquanto o ônibus me levava para o coração de uma cidade que eu não conhecia, enquanto minha última filha estava morrendo em Lagos e o país mergulhava no caos, eu não tive medo porque não estava sozinha.
