ILESA, DEZEMBRO DE 2008
Estou aqui. Minhas mãos tremem ao ajustar minha saia e meu coração bate na garganta, mas estou aqui, e não vou embora até ver você.Os convidados apareceram às centenas e as tendas são do tipo mais caro, com ar condicionado: seu pai morreu bem. O campo de esportes da escola secundária foi transformado. Há estandartes com a foto do seu pai, seguranças para expulsar os mendigos e fios com lâmpadas para que a festa possa continuar durante toda a noite. Qualquer homem que tenha filhos capazes de armar esse tipo de circo para honrá-lo na ocasião de sua partida teve uma morte bem-sucedida. Mas eu não estou aqui por causa da morte dele; vim por causa da filha que deixei para trás, aquela cuja morte eu me recusei a assistir.Quis voltar muitas vezes, apenas para perguntar a você sobre os últimos momentos dela.Não podia mais me dar ao luxo de ter esperança, então tinha descartado a ideia de que ela pudesse ter sobrevivido de alguma forma. E, sempre que pensava em voltar para você, era apenas para perguntar se ela tinha sofrido muito.Mais de uma vez, arrumei uma pequena mala e disse ao meu motorista que se preparasse para uma viagem a Ilesa. Mas todas as vezes que me programava para deixar Jos, eu ficava paralisada, incapaz de me levantar da cama, certa de que o menor movimento ia me estilhaçar em um milhão de pequenos fragmentos. Passava esses dias na cama, chorando sem soluçar, deixando que as lágrimas escorressem pelas laterais do meu rosto até me fazerem cócegas na orelha, porque não tinha energia para erguer as mãos e secá-las. Depois de uma década, parei de planejar essas viagens e, durante cinco anos, não fiz uma mala sequer nem disse ao meu motorista que se preparasse para uma viagem ao sul.Mas estou pronta agora, pronta para ouvir sobre seus últimos momentos e saber onde foi sepultada. Não faz sentido negar que o pior aconteceu comigo mais de uma vez, e não ver seus túmulos não muda o fato de que sobrevivi àqueles que deveriam ter ficado diante da cova recém-escavada e atirado os primeiros punhados de terra sobre meu caixão. Akin, não me importo mais em honrar a tradição: preciso ver o túmulo da minha filha.Sob as tendas, tudo é amarelo e verde. Toalhas verdes, capas amarelas de cetim com laços verdes para as cadeiras. Eu me sento no primeiro banco que encontro sob uma tenda que tem seu nome; há mais de mil convidados. Você deve ter gastado muito dinheiro, mas não parece.Todos na mesa estão reclamando porque ainda não serviram nada a ninguém. Nem mesmo uma garrafa d'água.— Mas a tenda é muito bonita e as cadeiras estão muito bem decoradas.Ainda saio em sua defesa, como se esta ainda fosse a minha família, como se eu não fosse a filha pródiga.O homem ao meu lado zomba.— Por acaso devemos comer as toalhas de mesa? Tenho comida em casa. Por que convidar tanta gente se sabiam que não teriam dinheiro para nos alimentar? Precisavam fazer uma grande festa? É obrigatório?— Tenho certeza de que os garçons vão chegar logo para nos servir.Eu me levanto e vou para outra mesa. Mais uma vez, fico inquieta; tamborilo sobre os joelhos e vasculho a multidão em busca de uma cabeça que se pareça com a sua. A essa altura você já deve ter tirado o chapéu; chapéus fazem sua cabeça suar. Estou à procura de uma cabeça descoberta.— Testando, testando microfone. Um, dois, um, dois. Testando, testando, um, dois, um,dois — diz alguém no sistema de alto-falantes.Eu o vejo; você está de pé próximo de uma mesa vizinha. Meus olhos encontram seus lábios; o lábio inferior ainda é rosa. Você ainda não me viu; seus olhos perscrutam a multidão e você cumprimenta os convidados com um ar distraído. Está procurando por alguém. Você passa pela minha mesa. Enterro as unhas nas palmas para não estender a mão e tocá-lo. Já não me sinto tão corajosa como quando resolvi vir, e tenho vontade de me agarrara os pequenos confortos da ignorância. Talvez eu ainda não esteja pronta para saber como minha filha morreu, no fim das contas. Talvez eu não precise saber.— Baba Rotimi, o banqueiro, veja só como ele anda, é o dinheiro que está andando — diz uma mulher à minha mesa, dando um tapa na coxa.O olhar dela segue você.Fico atônita por eles ainda o chamarem pelo nome de Rotimi e espero que não façam issona sua presença. Apenas pessoas cruéis o fariam lembrar de nossa perda dessa maneira.— O irmão dele também está aqui? Os dois únicos filhos homens de sua mãe, e ouvi dizer que nem se cumprimentam — disse a outra mulher à mesa.— É claro que ele também está aqui. Não foi o pai dele também que morreu? Não foi? Eles terão que passar por cima de suas diferenças, nem que seja em nome do pai morto —retrucou a primeira mulher.— Você sabia que dizem que foi a mulher dele que causou problemas entre os dois? Uma mulher perversa, imagino, daquelas que não querem a família do marido por perto de jeito nenhum... mulheres cruéis.Então é assim que nossa história é contada? Eu sou a perversa e você é o santo. Eu me levanto e ando ao redor da tenda até encontrá-lo diante de uma mesa cheia de bebidas.Ao seu lado há uma adolescente. Ela se parece comigo, mas tem o seu nariz. Eu pisco, mas ela ainda está lá, em pé ao seu lado. Eu me aproximo e minha boca se abre. Imaginei esse encontro de muitas maneiras, mas nunca imaginei ver seu braço em torno dos ombros dela,muito menos me permiti pensar que ela estaria sorrindo para você.Como pôde não me dizer nada?Meus olhos se encontram com os dela primeiro; ela me olha como as pessoas olham para os intrusos, como se eu fosse alguém que ela nunca viu antes. Há tantas palavras brotando em meu peito, que tomam todo o espaço do ar e eu mal consigo respirar. Você se vira e nossos olhares se encontram. Eu olho do seu rosto para o dela e tenho a sensação de que vou desmaiar. Essa é uma batalha que eu achava que tinha perdido e, de repente, parece que a venci — não apenas a batalha, mas a guerra.Ela tem os olhos da minha mãe, seu pescoço longo e o contorno delicado dos lábios. Quero tocá-la, mas tenho medo de que recue ou até mesmo desapareça. Enquanto respiro fundo, ela toca o crucifixo pendurado no colar de ouro.Eu me aproximo.— Essa é minha filha? Akinyele, essa é minha filha?