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Embora um raio de fato tenha caído no mesmo local duas vezes, não pensei que deixaria destruição em seu rastro pela segunda vez. Pouco depois de seu primeiro aniversário, levei Rotimi para fazer o teste de genótipo, e meus piores temores foram confirmados quando, na volta do trabalho alguns dias depois, peguei os resultados. Mas eu estava calmo quando cheguei em casa, tinha certeza de que minha filha sobreviveria, apesar dos dois SS vermelhos na folha do laudo. Ainda não sei explicar de onde vinha essa certeza, mas ela estava lá, firme como o chão no qual eu pisava. Yejide cobriu os olhos com as mãos quando eu lhe disse o resultado — mas, fora isso, não esboçou nenhuma reação à notícia. E quando Rotimi teve sua primeira crise de anemia falciforme, ela se recusou a ficar com ela no hospital.— Eu? Eu deveria passar a noite com ela? Akin, estou exausta, completamente exausta —disse Yejide antes de sair da enfermaria onde Rotimi se recuperava. — Preciso descansar.Eu me culpava pela maneira como ela falava, como se tivessem lhe arrancado toda a possibilidade de experimentar alegria. Observei-a saindo da enfermaria, perguntando-me se ela precisava apenas de uma boa noite de sono ou se o cansaço se transformara em uma exaustão permanente.Depois de cerca de duas horas, tive permissão para ficar com Rotimi. Ela parecia tão pequena, fora do lugar naquela cama de hospital. Estava com um acesso venoso. Eu me perguntei se era o suficiente, se os médicos sabiam o que estavam fazendo, usando um único acesso venoso para combater algo que já nos tirara um filho. Sentei-me em uma cadeira ao lado do leito, mantendo as mãos na borda do colchão, com medo de tocá-la.— Mamãe? — disse ela depois de um tempo, levantando a mão livre. — Mamãe mi?Eu limpei a garganta e olhei para a cabeceira da cama.— Sua mãe está cansada, ela está dormindo.Eu não consegui olhar para seus grandes olhos castanhos enquanto mentia. Mesmo ali,com os olhos colados na cabeceira da cama, mentir me parecia errado, algo pelo qual eu precisava ser perdoado, perdoado por uma criança cujo rosto era uma versão em miniatura do rosto de Yejide. Tanto que olhar para ela era como ver Yejide através de uma lente de miniaturização. Todas as características do rosto de Rotimi pertenciam a Yejide, exceto o nariz. Seu nariz já era plano e largo, exatamente como o meu. Eu apreciava quando as pessoas percebiam isso, quando diziam: Esta menina tem o nariz do pai. O nariz do pai.Depois, naquela noite, um médico e alguns estudantes munidos de pranchetas apareceram para ver como Rotimi estava. Quando era pequeno, eu sonhava ser médico, antes de minha mão direita ser longa o suficiente para tocar minha orelha esquerda, antes de eu ter idade para começar a escola. Era uma época em que eu não sabia que havia outras profissões, quando achava que era a única coisa que as pessoas que frequentavam a escola poderiam se tornar.Depois que os outros foram ver outro paciente, um dos estudantes falou comigo baixinho.— Senhor, estou realizando uma pesquisa sobre anemia falciforme. Para ajudar no aconselhamento pré-conjugal. Eu ficaria feliz se pudesse preencher...Eu assenti com a cabeça como um agamá enlouquecido, peguei o questionário que ele me entregou, ansioso para me livrar dele. Eu me perguntei quantos questionários Yejide teria preenchido nos dias que havia passado no hospital com Sesan. As perguntas estavam espremidas em uma única página, como se o estudante estivesse tentando poupar dinheiro em fotocópias; só a tentativa de ler as palavras me deu dor de cabeça.— Papai mi.— Sim, querida. O que foi?Fiquei grato por aquela distração e deixei de lado o questionário.— Mamãe mi? — perguntou ela, a voz quase inaudível.Ela respirou fundo, como se dizer aquela única palavra tivesse exigindo todas as sua sforças. Segurei sua mão, olhando em seus olhos desta vez.— Sua mãe vai chegar logo, daqui a pouco, mas, enquanto esperamos, vou contar uma história. É sobre Ijapa, a tartaruga, e sua esposa Iyannibo. Eu repeti o começo da história, sobre o casal estéril e as tentativas frustradas de ter umfilho. Descrevi a visita de Ijapa ao Babalaô, o pote de ensopado ao qual ele não conseguiu resistir, seu retorno envergonhado ao Babalaô depois de ter arruinado sua única solução comas próprias mãos. Rotimi ainda estava acordada quando terminei a canção, então continuei a história. Quando Ijapa voltou ao Babalaô, ele pediu e suplicou. Rolou pelo chão, implorando perdão, clamando por outra chance.— Não, não posso ajudá-lo — disse o Babalaô.— Ajude-me, não por mim. Pense em Iyannibo, minha esposa. Ajude-me, não, na verdade,ajude minha pobre esposa, ajude-a.O Babalaô pensou na pobre Iyannibo. E, embora Ijapa tivesse feito algo terrível, tivesse desobedecido suas instruções, em nome da pobre Iyannibo, o Babalaô teve piedade dele. Ele deu a Ijapa uma poção para beber. Logo depois que Ijapa bebeu a poção, sua barriga ficou plana novamente.A história que Moomi me contava não terminava por aí. Aparentemente, a tartaruga e sua esposa não podiam continuar sendo apenas o Sr. e a Sra. Tartaruga, isso não era suficiente. A história continua até que a esposa da tartaruga tem um filho para que todos pudessem viver felizes para sempre. Eu não me dei ao trabalho de contar essa parte à minha filha. Era a mentira na qual eu acreditava no começo. Yejide teria um filho e nós seríamos felizes para sempre. O custo não importava. Não importava quantos rios tivéssemos que atravessar. No fim de tudo havia uma grande extensão de felicidade que começaria apenas depois que tivéssemos filhos, nem um minuto antes.Daquela primeira vez, Rotimi passou uma semana no hospital. Eu consegui tirar apenas dois dias de folga para ficar com ela, mas passava as noites no hospital, dormindo na cadeira de madeira em frente à enfermaria, sonhando novamente, pela primeira vez em anos, com Funmi. Ela não saía da minha cabeça desde que Rotimi tinha sido diagnosticada. Era impossível não me perguntar se as mortes de Olamide e Sesan não teriam sido uma forma de punição. Seem alguma balança de justiça universal, por algum tortuoso processo de carma ou esan, meus filhos tinham pagado o preço pelo meu pecado. Sempre que eu acordava dos pesadelos que tinha com Funmi, não conseguia deixar de me perguntar se os sonhos eram um presságio sobre o destino de Rotimi, se três filhos equivaliam a um adulto na balança universal da justiça. Esses pensamentos nunca duravam além das horas escuras antes do amanhecer. Quando o sol nascia e eu entrava para ver minha filha, conseguia afastá-los. Aquela criança ia sobreviver a cada crise, seria a exceção a todas as regras — viva —, eu tinha certeza disso.Se realmente houvesse uma mão universal dispensando justiça, ela teria me levado em vez de crianças inocentes.Além disso, eu nunca tive a intenção de matar Funmi. Na noite em que ela morreu, a noite da cerimônia do nome de Olamide, tudo o que queria era chegar ao meu quarto sem tropeçar na escada. Graças às garrafas de cerveja que eu tinha entornado, os degraus flutuavam diante dos meus olhos. Eu me agarrei ao corrimão enquanto subia. Funmi, subindo logo atrás de mim, disse enrolando a língua:— Então, como Yejide engravidou?Eu não tive que pensar antes de responder:— Da mesma maneira que todas as mulheres ficam grávidas. Funmi riu.— Você acha que sou idiota? Com as mentiras e os disparates que você faz na cama, achaque não sei? Foi porque eu decidi não expor você?Continuei subindo as escadas. Se eu estava bêbado demais para responder ou achava que meu silêncio seria interpretado de uma forma favorável, não sei mais dizer com certeza.Lembro-me de que Funmi pegou a perna de minha calça por trás, mas isso não me incomodou.— Me diga — falou ela. — Me diga como um pênis que nunca ficou duro pode deixar uma mulher grávida? E não me diga de novo que só acontece quando você está comigo. Eu não acredito mais nisso.Nunca tive certeza se Funmi sussurrou ou gritou aquelas palavras. Mas naquela noite soou como se ela as tivesse berrado, como se ecoassem por cada cômodo da casa. Ela já tinha soltado minha calça quando me virei para cobrir sua boca com a mão. E minha palma tocou seu rosto, cobriu sua boca por um breve momento antes de ela tropeçar, cair para trás e rolar escada abaixo.*Quando finalmente mandou me chamar, Moomi não me pediu para encontrá-la em casa.Ela me pediu para ir até sua tenda no mercado. Foi um insulto calculado. Um movimento com o intuito de me lembrar que ela nunca havia colocado os pés na loja que comprei para ela depois que Dotun deixou o país. Moomi sempre reclamou do mercado. Ela detestava o chão, que ficava escorregadio e lamacento durante a estação chuvosa, duro e poeirento na estação seca. Desprezava as mulheres do mercado que despejavam o lixo direto na rua. Odiava a algazarra permanente, o calor insuportável de várias pessoas se espremendo umas contra as outras, tentando passar pelas ruas estreitas. Detestava como todos os dias a mão, a bolsa ou a bunda grande de alguém derrubava suas mercadorias. Que pés apressados esmagassem seus tomates e pimentas antes que pudesse recolhê-los e colocá-los de volta na bandeja. Acima de tudo,porém, odiava o fedor — nunca parava de senti-lo. Suas narinas nunca se adaptaram ao odor desagradável de tantas coisas em decomposição em um único espaço.Durante toda a sua vida, mesmo quando era apenas uma jovem noiva cujo marido se recusou a lhe dar o dinheiro para uma barraca de madeira, Moomi sempre acreditou que seu lugar na vida valia mais do que uma barraca no mercado. No fundo do coração, sabia que seu lugar era com as mulheres que podiam vender suas mercadorias em uma loja, protegidas do maldito calor do mercado. Foi por isso que comprei para ela a maior loja na parte mais cara do mercado. Mas, quando a visitei em Ayeso para entregar-lhe as chaves, ela as jogou de volta em cima de mim.Quando apareci em sua tenda, ela agiu como se não me conhecesse, recusando-se a me cumprimentar. Fiquei sentado em um banco de madeira durante meia hora enquanto ela atendia aos clientes.Soube que ela estava pronta para falar comigo quando colocou um pedaço de nylon transparente sobre as bandejas de tomate e pimenta. Ela se sentou no banco de madeira, tão distante de mim quanto era possível sem se sentar no ar. Cumprimentou-me com as únicas palavras que se dignou a me dirigir desde que me dissera para cortar suas pernas se um dia ela pusesse os pés em minha casa novamente.— Onde está o meu filho? Quando Dotun vai voltar para casa?Embora tivesse dito a ela que Dotun estava são e salvo na Austrália, onde ia muito bem, se suas cartas fossem sinceras, ela continuava a se comportar como se eu o tivesse trancado em um porão apenas para tornar sua vida miserável. Eu tinha aprendido da pior forma que não havia uma maneira satisfatória de responder a suas perguntas. Todas as respostas que eu tentava serviam apenas para alimentar as chamas de sua raiva. Ignorar suas perguntas era o melhor a fazer, o mais fácil.— Por que você não me disse para ir até sua casa? Sobre o que podemos falar no mercado?— Por quê? Akin me pergunta por quê. Deixe-me dizer por quê: eu tenho que vir aqui para vender meus produtos porque não quero comer grama e areia. Você sabe que é isso que as pessoas comem quando não têm dinheiro. Agradeço a Deus por sua irmã. — Ela ergueu o rosto para o céu. — Meu Criador, agradeço por Arinola, ela sempre se lembra da pobre e velha mãe. Se eu tivesse dado à luz apenas Dotun e este aqui, agora estaria fervendo areia para o café da manhã.Suspirei.— Moomi, foi para isso que você me chamou aqui?— E se fosse? Se fosse para isso que o chamei aqui, ia me dar as costas? Não me surpreenderia se fizesse isso. Minhas palavras não significam mais nada para você.— Moomi, o que você quer?Ela cruzou os braços sobre o peito.— Você pode fazer a mágica que quiser, continuar me enganando. Você é filho do seu pai,e também é capaz de contar mentiras suficientes para ressuscitar os mortos.— Por que queria me ver?— Por que você está gritando? É assim que fala com sua mãe? Como uma criança sem educação?Eu respirei fundo.— Sinto muito, Ma. Não fique aborrecida, por favor.— Como está a sua mulher?— Bem.— Ela nem ao menos me enviou seus cumprimentos? Então é assim que as coisas vão ser agora? Você sabia que faz mais de um ano que ela não vem me visitar? E vivemos na mesma cidade, na mesma cidade.— Ela tem estado ocupada com o trabalho. Ela também não quer comer grama e areia.— Você se acha engraçado, abi? Enfim, Arinola me contou que Rotimi foi internada no hospital. Como ela está agora, fisicamente?— Já recebeu alta.— Hummm, que Deus a proteja.Ela disse essas palavras sem emoção, como se estivesse rezando por alguém que não conhecia ou que lhe era indiferente.Observei as pessoas que passavam para não ter que olhar para ela.— Amém.Ela fungou, em seguida suspirou. Eu sabia que, o que quer que ela fosse dizer, eu não ia gostar. Já conhecia bem aquela sequência de fungada e suspiro, era uma tática antiquíssima,que ela usava para se fortalecer quando estava prestes a fazer um pedido que eu relutaria em aceitar.— Por que você está desviando o olhar? — perguntou ela. — Olhe para mim, olhe para o meu rosto. A razão pela qual pedi que você viesse me ver, muito embora, até onde eu sei,você poderia ter matado meu filho... — Ela fungou. — Ainda assim, se o mundo souber como sua vida está começando a parecer a vida de uma pessoa insana, as pessoas vão dizer que é a vida do filho de Amope que está se desfazendo como um trapo velho. Então não posso ficar calada, mesmo que você diga que meu hálito fede. Vou dizer o que acho. Está me ouvindo?— Estou ouvindo, Ma.— Como você deve ter percebido, parece que sua mulher está destinada a ter filhos abiku. E você, rapazinho, não revire os olhos enquanto falo, achou que eu não ia ver? Acha que fiquei cega? — Ela deu um tapa no dorso da minha mão. — Mesmo que viva mil anos, você nunca terá idade suficiente para me olhar desse jeito. Ainda mais quando tudo o que digo é para o seu bem! Quando tudo que fiz por você desde que nasceu foi para o seu bem!— Moomi, o que você quer de mim agora? Por favor, termine de uma vez o que ia dizer.— Há uma garota, talvez você a conheça. — Ela balançou a cabeça. — Não, ela não é da sua idade, não pode conhecê-la. Acabou de terminar a escola. É uma boa moça, seus olhos ainda não estão abertos, você sabe, como essas garotas de hoje em dia.— E?Eu podia sentir um latejar na testa, como o começo de uma enxaqueca.— Deus faz o que lhe apraz... quem sabe, talvez essa garota possa gerar filhos para você,filhos que viverão. Não estou dizendo que Yejide seja uma má pessoa, mas não podemos lutar contra o destino. E a forma como as coisas aconteceram desde que você se casou com Yejide, não creio que ela esteja destinada a ter filhos neste mundo. Ela se esforçou muito,mesmo uma pessoa cega pode ver o quanto ela se esforçou. Mas são poucos os que conseguem vencer uma luta contra o destino. Já vivi tempo suficiente para saber disso.— Você quer que eu me case com essa garota que encontrou?Eu lhe dei as costas. Do outro lado da rua, um homem estava colando cartazes de campanha eleitoral em um poste de luz.— Não quer ter filhos nesta vida? O que vai fazer se Rotimi morrer?— Rotimi vai viver.Eu não estava tentando convencê-la. Realmente acreditava naquilo, como um fato. O sol nasce no leste, quatro mais quatro é igual a oito, minha Rotimi ia viver.— Veja bem, mesmo que Rotimi viva, apenas um filho? Em toda a sua vida, um único filho?— Você quer que eu tome outra esposa, de novo?O homem do outro lado da rua se afastou do poste, examinou o cartaz verde, assentiu, em seguida passou para o próximo poste. O cartaz que ele colava era verde e branco, e, de onde eu estava, pude ler "Esperança 93".— Não à força. Se não quiser se casar com ela, podemos pensar em algo. Basta engravidá-la.— Ela bateu o dorso de uma das mãos na palma da outra. — A sabedoria não pode ter se tornado tão escassa neste mundo a ponto de termos que viajar para o céu para encontrar a outra esposa.— Lai lai, Moomi. Jamais.— Não se apresse tanto em recusar. Eu sei que você está pensando no que aconteceu com Funmi, mas...Quando ela mencionou o nome de Funmi, parei de ouvir suas palavras. Via apenas sua boca se movendo.Ela bateu no meu ombro.— Akin? Está me ouvindo? Não vai dizer nada?Coloquei a mão na testa, batendo os pés em sintonia com o ritmo latejante em minha cabeça.— Moomi, você fala como se já não tivesse destruído minha vida o suficiente.Ela ficou boquiaberta.— Akinyele, que bobagem é essa que está dizendo?— Não se meta mais nesse assunto, ema da soro mi mo, está me ouvindo?— Você ficou louco? O que foi que eu disse que...?Eu me levantei.— Não me chame para ter esse tipo de discussão novamente. Nunca mais. Lai lai.— Eu? Abi, você não sabe com quem está falando, ni? Akin? Akinyele? Abi, está indo embora, Akin? Volte aqui. Akin, ainda estou falando com você. Não está me ouvindo chamar? Akinyele!Não olhei para trás.

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