ILESA, DEZEMBRO DE 2008
Chego a Ilesa pouco antes da meia-noite. Eu e meu motorista vamos de hotel em hotel,porque, ao que parece, todo o país está na cidade nesta sexta-feira. Não encontramos nenhuma vaga até chegarmos a Ayeso, a última parte da cidade que eu teria escolhido,porque fica muito perto da casa de seu pai. Mas tenho que dormir em algum lugar e pego o único quarto vago no Beautiful Gate Guest House. Imploro ao recepcionista que permita que Musa durma no sofá do que parece ter sido um dia uma sala de estar, mas agora serve de recepção. Estou cansada, mas não consigo dormir. Saio do quarto e vou até a varanda adjacente, de onde consigo ver a casa de seu pai, que fica quase em frente, logo após o ponto em que a rua asfaltada mergulha no vale. É fácil identificá-la porque, além do lugar onde estou hospedada,é a única casa na qual as luzes estão acesas, graças a um gerador. Há vários carros do lado de fora, estacionados em fila dupla na rua principal. Há pessoas comendo na varanda; há pessoas por toda a parte. De onde estou, não consigo ver o quintal, mas vejo fumaça saindo de lá. Eu deveria estar lá agora, vigiando o cozido em ebulição e dizendo aos cozinheiros contratados para virar a carne antes que queime, certificando-me de que eles comecem a cozinhar o arroz jollof por volta das cinco da manhã e o inhame e o ensopado por volta das seis, para que todos possam comer antes de dirigirem à igreja para o funeral. É o que as esposas fazem; fiz isso muitas vezes, você se lembra? Você ao menos percebia como eu me esforçava?Por que me convidou para esse funeral? Como descobriu onde eu estava? Pensei que você tinha me apagado de sua vida, como uma professora remove as anotações antigas de um quadro negro com um apagador. Então recebi aquele cartão pelo correio, e as palavras impressas me convidavam, da parte do anfitrião Akinyele Ajayi. Fico observando a casa da sua família, na esperança de reconhecer alguém, pelo menos uma daquelas pessoas que um dia considerei minha família, nesse lugar que um dia foi minha casa. Mas estou muito longe.Consigo ver as pessoas, mas não os rostos, e qualquer um dos homens pode ser você. Ainda há tendas do lado de fora; suponho que sejam da vigília realizada esta noite. Eu não tinha intenção de comparecer, de ouvir você e seus irmãos contarem mentiras cuidadosamente fabricadas sobre seu falecido pai entre um hino e outro.Posso imaginar muito bem as palavras comedidas que você deve ter dito esta noite, as platitudes esperadas de um primogênito. Você deve ter feito um bom trabalho, deve ter levado algumas pessoas às lágrimas. Aqueles que não conheciam seu pai devem ter ficado tentados a chorar copiosamente pelo fato de o mundo ter perdido uma joia como ele na tenra idade de noventa anos. Sua mãe, como sempre, deve ter ficado orgulhosa. Como você deve ter falado primeiro, seus irmãos não devem ter ficado à altura de suas habilidades de oratória,nenhum dos dois seria capaz, mesmo que tivessem um ano para se preparar. Fico na varanda até as luzes se apagarem na casa de seu pai, então volto para o quarto e adormeço imediatamente. Acordo antes das seis. O chão está frio e, enquanto caminho até a varanda, calafrios serpenteiam pelas minhas pernas. Na casa de seu pai, parece que ninguém dormiu. Talvez você tenha fechado a casa em Imo e dormido aqui a noite passada. Eu me sento em uma cadeira de plástico e observo. Não tenho pressa de me arrumar porque não vou à igreja.O cantor da elegia fúnebre chega por volta das sete com seu pequeno megafone. Ele se posiciona na rua e começa a cantilena, louvando primeiro a nação Ijexá, à qual seu pai pertencia. Aprendi os versos dessa oriki pouco antes de me casar com você. Sua mãe me ensinou todos os versos que conhecia, e eu os memorizei com devoção. Ela me disse para acordá-lo de joelhos pela manhã, cantando os versos em louvor a sua linhagem. Eu preferia abraçar seu corpo e sussurrar as palavras em seu ouvido, mas você não gostava de ouvir poesia, nem pela manhã, nem em nenhum outro momento, e era Sesan quem apreciava minhas interpretações. Em seguida, o cantor louva a família de sua avó paterna. Ainda me dão dor de cabeça, essas palavras sobre pessoas que morreram muito antes de nascermos.Quando o canto finalmente chega ao oriki de seu pai, estou com lágrimas nos olhos. Não sei se estou chorando por mim mesma, por você, por seu pai, por todos esses anos que passaram ou porque o cantor entoa os versos tão lindamente. Há uma mulher de pé ao lado dele — as mãos estão erguidas no ar. Posso vê-la chorando, sacudindo o corpo até sua saia cair no chão. Ela não a recolhe. Minhas mãos estão frias quando toco o rosto para secar as lágrimas.Há gemidos altos quando o caixão de seu pai, que parece branco de onde estou, é levado para fora da casa. Os lamentos se intensificam quando os carregadores erguem o caixão e o apoiam nos ombros. As pessoas ficam em duplas ou trios, agarrando-se umas às outras como se temessem desabar sob o peso do luto se não se agarrassem a alguém. Uma voz feminina atravessa o barulho e chega até mim.— Meu pai, é realmente o fim? Você está realmente nos deixando? Não vai mais acordar?Não vai nem ao menos se despedir? Meu pai? Meu pai?Os carregadores começam uma marcha em direção ao carro fúnebre; um trompetista solitário vai à frente, tocando "Shall We Gather at the River". O cantor de louvores também continua com seu hino.Ma j'okun ma j'ekoloOhun ti ganhou ba n je l'orun ni o maa ba won jeA pequena multidão que está reunida na frente da sua casa se dispersa. Muitos entram nos carros estacionados, que começam a se mover devagar, formando um comboio atrás do carro fúnebre. O primeiro a ganhar velocidade é uma picape com um homem pendurado na janela segurando uma câmera de vídeo sobre o ombro. O carro fúnebre segue, a sirene anunciando a partida final de seu pai do bairro onde passou a maior parte da vida adulta. Ele nunca mais voltará para cá: depois da missa, será enterrado no cemitério da igreja em Ijofi. Vários carros reluzentes seguem o cortejo fúnebre, jipes e SUVs de seus filhos e parentes próximos. Espero até o último carro ter saído antes de voltar para o meu quarto.Visto minhas roupas mais ou menos no momento em que você deve estar de pé ao lado da cova recém-cavada de seu pai, cercado por sua família e pelos sacerdotes. Você será o primeiro dos filhos a lançar um punhado de terra no túmulo de seu pai. Os lamentos vão recomeçar e, enquanto todos observam os coveiros começarem a encher a cova de terra, até os homens ficarão com lágrimas nos olhos. Casais que não se falam há semanas se darão as mãos. No funeral do meu pai, eu estava chocada demais para chorar, mas você ficou com lágrimas nos olhos, mesmo que não tenha deixado nenhuma delas rolar. Segurei sua mão enquanto você fungava e piscava várias vezes. Akin, quem vai segurar sua mão hoje se você chorar em silêncio?
