Kamila
- Mas é aquilo né? Tudo passa.
Minha avó dizia frente ao fogão enquanto o café fervia.
Tudo passa.
É, sim, talvez com o tempo, mas não no dia seguinte.
A verdade era que todas as minhas preocupações, as perturbações da minha mãe, a fase ruim, tudo isso era suprimido pelo medo eminente que nos causava a dívida do meu tio.
Alexandro, bem, ele tinha saído há uma hora, mas agora definitivamente. Ele não tentou resistência, sabia a merda que fez, só arrumou as poucas coisas que tinha dentro de alguma mochila e foi embora antes que a minha mãe acordasse.
Minha avó entretanto era mais resistente. Ela não só assistiu à partida do meu tio, como também fez isso de cabeça erguida, sem derramar nenhuma lágrima.
Agora ela estava fazendo um café pra nós duas, pois estávamos sozinhas naquela cozinha.
Ela tinha acordado cedo e eu simplesmente não tinha dormido.
Com uma garrafa de café e duas xícaras nas mãos ela se sentou na mesa bem à minha frente.
- É sim Kamila, tudo passa.
- Mas como a senhora vai fazer vó? - perguntei entre um gole de café - a gente não tem o dinheiro.
- Quer saber de verdade minha filha? - ela passava a mão nos cabelos brancos - não sei. A vó tem que ser forte agora Kamila, eu vou me resolver com aquela gente, explicar a situação, mas não ache que eu sou ingênua em pensar que eles vão perdoar a dívida, não, se eu tiver sorte, posso conseguir no mínimo um prazo maior.
- E se não tiver? - apertei a xícara entre meus dedos - e se não tiver vó?
- Então, vai ter retaliação.
Não ousei perguntar muito mais.
- A senhora não pode fazer isso, não pode ir sozinha, é perigoso.
- Não vou envolver mais ninguém nisso, a sua mãe já sofreu demais, Lívia está prestes a entrar na faculdade, já é muito ruim para o currículo dela que ela more aqui, e Marta é cardíaca. Não Kamila, eu vou sozinha - ela estava resignada.
- E-eu vou - quase não proferi essas palavras - a senhora não vai sozinha, eu vou junto.
- Ô minha filha - ela me olhava quase com pena - eu não vou deixar Kamila, tu é uma criança, lá não é lugar pra você.
- E é lugar pra senhora!? - me exaltei - vó, não é querendo te ofender, mas como vai ser? A senhora vai aparecer lá, no meio daqueles marginais, de chinelo e grampo no cabelo!?
Ela riu.
- Pode até ser, mas eu não vou te envolver nisso, você é minha netinha Kamila.
Escutar minha vó me chamar assim foi reconfortante e trucidante ao mesmo tempo. Eu queria realmente ser só a netinha dela, mas eu não era.
- Vó - respirei fundo - quando eu tinha doze, vi meu pai traindo minha mãe na própria cama enquanto ela estava fora, e até os treze ele me deu incontáveis surras pra eu não contar. Quando minha mãe tentava me defender ela apanhava, quando ele chegava bêbado eu apanhava. E quando eu tinha quatorze, decidi aprender a andar de bicicleta escondido, ele não deixava, então quando eu cheguei em casa com o joelho ralado e ele descobriu, bom, essa foi uma das piores surras, foi quando eu decidi que não ia mais deixar ele encostar em mim de novo. Desse dia em diante, quando ele saía pra beber, eu pegava minha mãe e Miguel e os levava pro meio do mato vó, minha mãe não te conta essas coisas mas a gente se escondia a noite toda numa moita. No outro dia eu ia sozinha em casa pra ver se ele não estava lá ou se estava dormindo. Quando acontecia nós voltávamos e minha mãe nos trancava no quarto até ele se acalmar e prometer não nos machucar, o que não acontecia as vezes, mas era muito melhor de que ser acordada no meio da noite com os gritos dele. - minha avó estava abismada, com uma mão sobre a boca e a outa apertando o tampo da mesa - a senhora entende como foi difícil pra mim crescer com a minha mãe rejeitando qualquer plano meu de fuga? Depois eu entendi que ela só tinha medo, por ela e por nós. Mas de qualquer jeito, foi humilhante abandonar aquela cidade apenas quando ele mesmo decidiu nos abandonar primeiro. Então, vó, eu não sinto absolutamente nenhuma falta daquele lugar e essa favela, por mais violenta que seja, é o paraíso perto do que eu já vivi, por isso não hesite em me qualificar pra essa luta, porque eu não tenho medo de valentões.
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O Dono do Morro
Roman pour AdolescentsBETO: Você está saindo com alguém, Kamila? KAMILA: Não - falei quase inaudivelmente com o coração disparado - Por quê? BETO: Porque eu quero comer você Kamila, e preciso saber se tem alguém atrapalhando meus planos. _________________________________...