1 - Infância

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O sol queimava fortemente Colorado City, uma cidade rural no meio do nada. Com um verão escaldante e um inverno onde os campos eram cobertos de neve. Aquela cidade quem detinha o controle desde a policia ate um simples mercadinho eram os membros da FLDS, uma igreja fundamentalista Mórmon, extremamente tradicional. Rafaella e Gizelly eram membros da FLDS e cresceram nos campos daquela cidade isolada.

E do campo se podia ouvir a risada das duas.

- Gi termina logo isso, eu tenho que voltar para ajudar no jantar

- Mas podíamos ficar só mais um pouquinho - ela a olhou com uma carinha pidona, seus olhos castanhos tão expressivos eram capazes de convencer qualquer um - A gente nunca tem tempo para brincar - ela fez bico

- Vão nos castigar se nos atrasarmos Gi - falou com calma e baixo

- Você é sempre muito chata - ela deu língua e Rafa ficou magoada, Gizelly era sua única amiga e ela queria que ela gostasse dela, rafa era tão tímida e reservada que mal se relacionava com as pessoas

- Vamos ficar mais um pouco - disse por fim. Gizelly deu um grito e Rafa deu risada do jeito dela.

Elas começaram a brincar pelas plantações e acabaram perdendo a hora. O tempo voava quando se juntavam.

Rafaella era um exemplo de criança obediente, filha de um dos representantes da Igreja ultraconservadora as regras eram ainda mais rígidas quando se referia a ela e seus irmãos. Como Rafa era a irmã mais velha de quatro irmãos, ela nunca tinha tempo livre. Com pouco mais de 9 anos de idade já tinha tantas responsabilidades que brincar era um luxo. Esse era o papel que ela deveria cumprir, cuidar dos irmãos e aprender as tarefas de casa para ser uma boa esposa. Ainda dividia o tempo entre a Igreja e a escola, essa última era um ponto de grande discussão na comunidade. Seu pai e alguns outros membros não acreditavam que as crianças deveriam ir para a escola ainda mais meninas, a educação ali era bem restrita pois sempre havia um medo de que isso os desviasse e os tornariam rebeldes. 

Gizelly era a irmã do meio de 5 irmãos. Sua mãe era a segunda esposa do seu pai. Na comunidade, poligamia não era só aceita como incentivada. Era o que Deus queria, dizia o pastor, e eles acreditavam totalmente nisso. Gi era mais moleca que Rafa e por isso já tinha sido punida mais vezes do que poderia contar, mas não podia negar que assim como Rafaella, Gizelly também tinha medo. No fundo ela tinha pânico do mundo lá fora, ninguém sabia o que era o mundo além dos limites da comunidade. Se alguém era expulso essa pessoa simplesmente morria para todos, sem família, sem ninguém em um mundo desconhecido. Era um caminho sem volta com a certeza de que nunca mais veríam a família e amigos outra vez. Essa ideia era assustadora demais para ambas, portanto seguir as regras era questão de continuar na única realidade que conheciam. Gizelly nunca se deu muito bem com os seus irmãos. Ter Lucas e Prior como irmãos era um pesadelo diário e como era a filha do meio ainda tinha uma dose extra de raiva ao ter ue dever obediência aos dois.

A vida na FLDS era assim, se acreditava que o isolamento os deixaria mais puros e próximos de Deus. Que o fim do mundo estava próximo e eles eram os escolhidos. Tudo fora da FLDS era impuro e pecador. Era esse o mundo das duas e desde que se lembram ambas aprenderam a temer o desconhecido e obedecer.

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Quando Rafaella chegou em casa ela já sabia o que a esperava. Mal fechou a porta e ouviu a voz do seu pai. Como um trovão em um vale sua voz ressoa por seus ouvidos e o pânico fazia sua respiração acelerar

- Ajoelha Rafaella - ela obedeceu, se ajoelhou em frente a uma cruz que ela conhecia bem. Não era a primeira vez que estava ali e com certeza não seria a última - Você é uma menina má Rafaella. Deus não gosta de meninas como você. Você sempre desobediente - ela mordeu os lábios com força ao sentir o impacto do cinto em suas costas - Peça perdão a Deus, Rafaella - o som do estalo do cinto contra as suas costas se fez presente e dessa vez Rafaella não conseguiu evitar o grito - Nem um pio

Aquele dia Rafaella teve que rezar por muitas horas. A surra não durou tanto, já havia sofrido piores, mas não significava que a dor não se fazia presente.

Com o passar das horas ficou impossivel ignorar um par de olhos a observando durante todo o tempo e isso quase lhe provocou um sorriso. Era Manoela com sua inseparável boneca nos braços e um olhar de preocupação. Rafa fingiu um sorriso para que parecesse que estava tudo bem mas Manoela apenas franziu o cenho, não acreditando nela.

Na manhã seguinte Rafa nao conseguiu ir para a escola e coube a Manu explicar o por quê a Gizelly. A menina de olhos castanhos não conseguiu ocultar a culpa que sentia. Se ela não tivesse insistido, nada disso teria acontecido.

Gizelly sempre estava entre a linha do ser ignorada pela família e ser o alvo dos irmãos mas com Rafaella as coisas sempre eram mais complicadas. Um passo fora da linha e o castigo era exemplar. Mas apesar de sempre se esconder em sua impulsividade, sentir a indiferença de seus pais era muito duro para Gizelly. A falta de carinho era um vazio que ela não conseguia preencher e apesar de ser muito nova para entender as próprias emoções sua carência era dificil de ser ignorada.

Ao terminar de explicar a Gizelly o que tinha acontecido Manu deixou um bilhete escrito pela irmã. Rafa mandava bilhetes o tempo todo, era sua forma de se expressar. Sua letra um pouco confusa e trêmula não foi suficiente para anular o significado das palavras ali escritas.

Oi Gi, desculpa não ir pra aula. Brigada por brincar comigo e ser minha amiga. É muito importante pra mim. Eu te adoro

Rafinha

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Essa fanfic usa como plano de fundo religioso tanto documentários e casos da FLDS quanto sobre o Judaísmo Ortodoxo.  Sei que parece absurdo poligamia e o fato de ser contra a educação. Mas isso é a atual realidade de pessoas que nasceram nessas comunidades conservadoras.

Essa história foi criada como uma homenagem a grandes amigos que foram expulsos de casa pelas suas famílias ou são constantemente hostilizados por serem LGBTQA+ . Meu objetivo é que eles de alguma forma fossem "vistos" mesmo que em uma fanfic. Muitos dos sentimentos de Rafa e Gizelly são inspirados nos desabafos dos meus queridos amigos. Desejo todos os dias que o mundo pare de os fazer temer ser quem são. Os amo incondicionalmente.

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