11 - Consequências P.2

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De todas as provações que poderia passar, experimentar o inferno em vida era a mais torturante de todas. E eu venho vivendo nele. Desde que Gizelly se foi minha vida mudou pra muito pior.

Flashback

Caminhei ate em casa sentindo meu mundo desabafar em minha cabeça. Eu sabia que meu egoismo ia me cobrar caro. Eu não tinha planos pra mim e Gizelly. Eu só queria viver um dia de cada vez. Eu não tinha nada a oferecer a ela por isso eu não a impedi de partir. Por mais que eu a quisesse manter comigo. Por mais que eu me sentisse perdida sem ela. Eu não cortaria suas asas. Eu a amava demais pra não deixa-la ir. Ela não pertencia a esse lugar e eu desejava de todo coração que ela finalmente fosse feliz mesmo que sem ela.  Por que eu sempre achei que ela tinha luz demais pra um lugar como aquele.

Eu não estava preparada para aquela despedida. Não estava preparada para um adeus e definitivamente não estava preparada para ver ela queimando na minha frente tudo que nos representava. Toda a nossa história consumida pelo fogo e virando cinzas. Ela me matou naquele momento, matou nossa história e me matou da sua vida. E mesmo sabendo que isso era o melhor, não me consolava. Não fazia a dor parar. 

Eu nem cheguei a abrir a porta de casa. A porta foi escancarada e senti meu cabelo sendo puxado com tanta força que me fez gritar de dor. Meu pai subiu as escadas me arrastando e eu ouvia Manoela gritando pro meu pai parar. Ele me levou ate o meu quarto.

- O que significa isso Rafaella? - eu nem consegui responder, estava tudo decorado com corações e rosas. Tinha um eu te amo em minha cama e uma carta da qual a caligrafia eu conhecia bem. Era de Gizelly - Você e Gizelly juntas? Uma aberração dessas na minha casa? - Eu não falei nada. Não tinha como mentir sobre isso - Viemos no seu quarto por que você desapareceu no seu próprio noivado e vemos essa vergonha - Ele puxou meu cabelo com força e eu trinquei os dentes - Você me envergonhou na frente de todos Rafaella. Você é uma vergonha pra essa família! - ele me soltou e eu me afastei - Você esteve com Gizelly, Rafaella? - ele gritava

- Sim - foi tudo que disse, não negaria mais

Assim que eles souberam eu pude ver o pânico da minha mãe, acho que ela me amava de certa forma mas não amava suficiente para ir contra meu pai e muito menos a Igreja. Mas o que me fez prender a respiração foi a ira nos olhos do meu pai. E eu estava certa em ter medo, na minha comunidade castigos físicos eram incentivados pois nos ajudavam a não desviar dos caminhos de Deus, aquele era o cenário perfeito para isso. E meu pai como o líder da igreja era o exemplo, eu como filha mais velha sempre fui sua maior vítima. 

Naquela noite ele me bateu, me bateu tanto que eu estava no chão com os braços cobrindo o meu rosto enquanto escutava os gritos insistentes de Manoela. Ele não parou, ou pelo menos não por muito tempo. Eu já havia perdido minha mente em minha própria dor naquela altura. Eu só tapava os ouvidos pra não ouvir mais os gritos, eu achei que ele ia me matar de tanto me bater mas ele não facilitaria as coisas pra mim.

Então quando ele parou eu não consegui me mover. Estava com medo de mexer um centímetro sequer e sentir a dimensão dos machucados. 

Eu nunca esqueceria aquele aniversário.

Eu fiquei de cama por uns 3 dias depois daquilo, nenhum dos meus irmãos pode me ver e minha mãe só deixava comida ao lado da cama e ia embora sem dizer uma palavra. E eu estava como uma morta-viva, com dores físicas e emocionais. Eu havia perdido Gizelly por medo de perder e decepcionar minha família. No fim decepcionei a todos e perdi tudo.

Não me surpreendi quando meu pai entrou no meu quarto e anunciou que eu iria pra penitência. Penitência é um lugar isolado de tudo e todos para pessoas que transgrediram. A gente não sabia onde ficava e as vezes nunca mais víamos as pessoas que iam pra lá. Você ia lá para repensar e se arrepender, perdia totalmente o contato com a família para não influenciá-los era o que eles diziam.

Eu parti sem poder me despedir de ninguém, ficar longe dos meus irmãos era o que mais me doía, em especial de Manu, dentre todos os meus irmãos Manoela e eu sempre tínhamos uma conexão especial. Ela era minha sombra quando era mais nova e com o tempo se tornou meu porto seguro. Manoela ficaria sozinha agora e meu coração apertou com a ideia de ninguém para protege-la.

Fim do flashback

Passaram-se dias, meses e anos. Eu trabalhava de manhã até o anoitecer. Todos eram tristes e silenciosos lá. Eu tinha pena das pessoas que foram enviadas pra lá e tiradas dos seus filhos. Elas eram as que mais choravam. Mas a gente não podia se falar muito, era proibido. Tudo era proibido.

Acho que fazia quase quatro anos que estava aqui. Já havia perdido a noção do tempo. Mas eu sonhava com aquele aniversário todas as noites. Gizelly indo embora, fogo, gritos e dor. Um pesadelo recorrente que me fazia acordar com falta de ar todos os dias. Também já fazia muito tempo desde que falei pela última vez. Ninguém notou, eu tampouco me importei. Dia apos dia fui me fechando em mim mesma, acho que era meu instinto de auto defesa falando mais alto. Sempre tive a tendência de me fechar quando me machucavam, sem nada nem ninguem para me puxar de volta, minha mente foi me prendendo aos poucos.

Eu nem sabia por que eu estava vivendo no final das contas, eu estava sobrevivendo na verdade. O único traço de humanidade que havia em mim eram cartas que eu escrevia para Manu e Gizelly. Eu pegava caneta e papel do escritorio escondido de vez em quando e escrevia. Não se podia mandar cartas e eu nem sabia para onde mandar. Mas eu escrevia de todas formas. Talvez um dia elas pudessem ler, talvez Gizelly um dia soubesse que ela sentia muito e que pensava nela sempre. Talvez Manu soubesse que ela a amava e que não queria te-la deixado sozinha. Mas com o passar do tempo eu parei de escrever tambem e ai não sobrou mais nada.

As vezes eu tinha vontade de fugir. Eu não tinha nada a perder

Eu havia trocado uma chance de ter uma vida com Gizelly por vida nenhuma. Um grande tapa na cara que a vida tinha me dado e eu ainda me encontrava no chão. Se eu tinha feito a coisa certa por que estava sofrendo tanto? Eu obedeci ao que me disseram que Deus esperava de mim e estava sofrendo. As vezes eu achava que estava sendo punida por haver estado com Gizelly por tanto tempo. As vezes achava que era por nao ter ido com ela. No fim eu tinha desistido de achar coisa alguma.

Foi enquanto tinha esses pensamentos que vi um dos membros da Igreja me chamarem. Aquilo era novidade. Fui com eles ate o escritorio e ambos me olhavam o que me intimidava

- Rafaella você esta recebendo uma segunda chance - eles falavam como se eu tivesse recebido o perdão por ter cometido um crime. Eu não esbocei nenhuma reação - Intercederam por você - Aquilo havia chamado minha atenção - O nosso irmão Daniel Caon decidiu te aceitar de volta como sua segunda esposa Rafaella - E no fim o meu destino me condenava a Caon mais uma vez, eu deveria esperar que nao receberia minha liberdade - Você vai se casar junto com a sua irmã - Manoela vai se casar? Ela nem terminou a escola ainda!

Aquilo havia tocado em algum rastro de emoção que ainda havia nela. Remoto e minúsculo mas ainda havia algum traço de humanidade que sobreviveu por todos esses anos

Eu deixei que eles entrassem

E eles foram tirando tudo de mim

Tudo que incomodava, tudo que estava errado

Até que não sobrasse nada

Eu era um espectro do que já fui

Perfeita para o ambiente, oca.

Então meninas só a titulo de informação essa penitência realmente existe. E a maioria das pessoas é mandada pra lá por tempo indeterminado e muitas nunca mais tem contato com a família. Elas trabalham para a comunidade (mão de obra escrava que fala) esperando serem perdoadas.

Esses dois capitulos são a base para a gente ver a personalidade das duas como adultas.

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