Dope

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Sanji queria se enterrar na areia depois daquela consulta.

Como ele podia falar aquelas coisas com a voz mais tranquila do mundo? Talvez de fora fosse diferente, mas na sua pele a calma do médico em relação a tudo aquilo era inacreditável. Daria um prêmio no fim do ano pela apatia de Law. Pensou até que a alma do moreno havia sido roubada a muitos anos por algum espectro negro e flutuante.

Todavia, estava grato pelo tratamento. Nunca contaria o que aconteceu a Chopper e, quando o confrontou sobre o diagnóstico, recebeu uma resposta que confortou seu coração.

"Torao disse que a infecção nas suas costas já está melhor."

Um sorriso singelo nasceu em seus lábios quando ouviu a declaração. Se sentia mais seguro com a discrição do médico. Até mesmo cogitou fazer um prato diferenciado no jantar, mas seus planos foram por água abaixo quando Usopp entrou na cozinha.

— Sanji! O que vai ter no jantar?

O loiro parou de guardar os pratos que secava para pensar no assunto. Podia fazer de tudo, menos pão, porém ainda tinha dúvidas de como agradecer Law. Quase respondeu quando o nakama lançou o convite.

— Nami descobriu um festival na cidade. Hoje a noite. Ela pediu companhia.

— Eu vou — nem mesmo deixou o outro terminar, concordando com qualquer coisa que sua deusa desejasse. E quem sabe se alguma garota bonita desse mole pra ele?

Um estalo em sua mente trouxe a lembrança do diagnóstico de volta aos seus trâmites cerebrais, mas ele estava pouco se fodendo para isso. Não era como se não tivesse um estoque vitalício de camisinhas para evitar mini Sanjis soltos pela Grand Line. Sorriu colocando o frango de volta na geladeira e puxando Usopp para uma conversa nada pura.

Era hoje que tiraria o Del Rey da garagem.



O cozinheiro se encontrava acompanhado naquela noite. As belas mulheres ao seu lado riam das suas piadas idiotas, a mesa transbordava de garrafas alcoólicas e o ar era bagunçado pela algazarra da festa.

Nami dançava com Usopp em algum canto do salão e Sanji usava dessa brecha para paquerar o máximo possível de ninfas ao seu redor. Insistia em uma quando Franky o chamou para carregar o corpo bêbado de Brook. Como esqueletos ficavam bêbados? Ninguém nunca saberia.

Olhou para a dama elegida a mais bonita da roda e a fez um carinho na face. Abriu a boca para convidá-la ao acampamento, mas parou no meio do caminho. "Ainda não", repercutiu em sua mente. Se contentou em roubar um singelo selar de lábios e sair correndo em direção ao companheiro, com a trilha sonora de reclamações e pedidos de retorno.

Com um cigarro na boca, Sanji se aproveitava da atenção de seres tão indescritíveis quanto elas.

Focado na sensação de ser desejado, carregava o esqueleto nos ombros, tentando não pensar muito nas decisões feitas naquela noite. Pelo jeito não tinha bebido o suficiente, pois ainda tinha consciência o suficiente para contestar as merdas que fazia. Não queria seguir aquela linha de raciocínio de novo, mas sua mente já estava nela a um bom tempo.

Se ludibriava dizendo que era por causa da doença, porém sabia que ela representava uma pequena parte do problema. O pior estava no passado e deveria continuar no passado. Mulheres eram a razão do seu viver e não mereciam se decepcionar com o romance barato do loiro. Imaginou se alguma daquelas garotas queria realmente algo além de uma conversa banal com ele. Não sabia qual resposta o deixaria mais decepcionado.

Durante a caminhada até mesmo cogitou voltar mais tarde e reencontrar aquela garota. Seria fácil reconhecê-la em meio a multidão com seu vestido vermelho e cabelos negros. Poderia pedir desculpas pelo beijo furtado, convidá-la para um jantar a luz de velas e dar a melhor noite da sua vida. Uns amassos não matariam ninguém.

A estrada de terra agora transitava entre o vilarejo e uma floresta de árvores espaçadas. Mais um pouco e chegaria à clareira onde poderia desovar o corpo do nakama. Os arbustos estavam virando pequenas árvores e, mais à frente, em cedros maciços. O companheiro assobiava tranquilamente uma melodia qualquer.

E foi ao som daquela cantiga de ninar que Sanji contemplou a imagem mais impensável naquela noite.

Meio escondido entre uma massa preta, pedaços de pele surgiam. Era um completo tarado por estar olhando duas pessoas se agarrando com um morto nas costas, sabia disso, mas ao mesmo tempo não conseguia parar de encarar.

Talvez a cerveja já tivesse tirado pouco do seu bom senso. Ou então fosse um sentimento de familiaridade naquelas mãos segurando o manto de zibelina. Quem sabe seria a curiosidade de entender porque a soma das vozes parecia tão curiosa aos seus ouvidos.

A pessoa encostada na árvore prendia o encapuzado com fome. Seja o motivo que fosse, o cozinheiro permaneceu até que a nuca de um dos desconhecidos escorregasse em direção ao cangote do outro, dando uma visão parcial do encurralado.

Seus olhos quase escaparam do rosto quando reconheceu os brincos dourados. Mas o pior com toda certeza foi ter um vislumbre do rosto de Law enquanto tinha os lábios sugados.

Seus sistemas simplesmente deram pane, suas pernas indo automaticamente para o mais longe do "casal". Tantas vozes soavam em sua mente e mesmo assim Sanji estava completamente desligado de qualquer razão existente. Parecia uma barata tonta depois de um litro de inseticida.

Apenas jogou o corpo de Brook em algum lugar do acampamento e seguiu para a cozinha improvisada. Fez uma chaleira inteira de chá de alface, capotando em seguida.

Em seus sonhos duas cenas se repetiam constantemente. Uma era a doce jovem que acabou abandonando por força do destino. A outra era ele mesmo fugindo da cena a qual presenciara naquela maldita noite.



De manhã acordou como se um caminhão tivesse passado por cima dele.

Chopper já tinha avisado que ele poderia morrer por queda de pressão se continuasse com aquele hábito, mas não era como se Sanji se importasse muito com a própria saúde. "Tocar o barco até o limite", era o lema do cozinheiro.

O sol nem tinha nascido direito e ele preparava o café da manhã. Em poucas horas ambas as tripulações zarpariam. As bandejas já estavam quase cheias quando o loiro lembrou dos vários momentos engraçados que compartilhou enquanto cozinhava com a tripulação.

Agora não era diferente, com Chopper tentando suborná-lo para fazer algodão doce acompanhado de biscoitos. Usopp por outro lado argumentava por uma outra causa.

— Você tem noção do quão anti higiênico é fumar enquanto cozinha? Todo mundo nesse navio pode morrer porque você é um viciado maldito!

— Seu narigudo desgraçado — respondeu apontando uma faca para o moreno — continue enchendo meu saco que eu esfrego ele na sua comida na próxima!

— Então isso seria um chá de saquinho..? — divagou Brook em sua plena ressaca.

Sanji apenas revirou os olhos para o companheiro, saindo em direção ao navio. Amaldiçoou seu sono por ter esquecido um tempero no navio. Caminhava tranquilamente até a costa, tragando seu fiel companheiro, pensando em nada além de como complementaria o desjejum.

Olhava para baixo, mas levantou as orbes azuis quando passos se juntaram aos seus.

E lá estava o capitão do navio vizinho, arrastando os pés pela grama. Até mesmo a espada que estava sempre apoiada em seu ombro era segurada com displicência, dando mais ênfase ao desgaste de Law.

Cabelos bagunçados, olheiras ainda mais proeminentes, roupas surradas. Algo em seus olhos parecia estranho, pupilas dilatadas de forma anormal. A pose adotada fazia Sanji imaginar que ele desabaria a qualquer momento.

O outro parecia não tê-lo visto, indo direto ao submarino amarelo sem se importar com o entorno. E claro, dando a perfeita visão das suas costas sujas de grama e do rastro de vômito que banhava seu ombro esquerdo.

Observou o homem entrar com dificuldade no navio. Balançou a cabeça e se dirigiu até a própria embarcação, o cozinheiro dos Heart Pirates não esperaria ele para sempre.

Vômito na nucaOnde histórias criam vida. Descubra agora