Curto dia, longa noite

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A aurora já raiava quando acordei. Dormi no máximo uma hora após voltar para a cama. Fiquei sentado alguns minutos esperando acordar totalmente. Abri as cortinas e deixei o sol entrar. Fui em direção á minha escrivaninha quando pisei numa pequena poça de um líquido escuro. Não era água. Tinha a mesma cor de vinho. Mas um vinho aguado. Como se tivesse sido misturado com algo mais fraco. Me agachei e toquei com meu dedo indicador. Levei até o nariz e senti o odor. Cheirava um pouco a ferrugem.
Então, quer dizer que aquilo era real? Aquilo realmente estava no meu quarto na noite anterior? Ou será que choveu e uma goteira acabou fazendo aquilo? Mas como poderia, sendo que o dia está ensolarado?
Deixei minhas indagações de lado e fui tomar café.
Meus pais estavam na cozinha. Yvonne já havia saído para a faculdade há algumas horas.

- Bom dia, Dário! - disse o meu pai.

- Bom dia, filho! - disse minha mãe, enquanto levava uma xícara de café até a boca.

- Bom dia! O que tem para o café?

- Bem, seu pai fez um omelete, mas só para ele, acredita?

- O que eu posso fazer? Eu acordo primeiro que todo mundo. Não queria que esfriasse. - respondeu meu pai, sentado na mesa ao lado do balcão.

Meus pais eram o típico casal tradicional. Minha mãe era alta e magra. Tinha o cabelo curto, quase sem fios brancos, apesar de já estar carregando o peso dos 40. Era dona de casa, mas também era advogada e possuía certificado de Técnica em Enfermagem.
Meu pai, trabalhava em uma escola de uma cidade vizinha, como professor de Literatura. Era um homem alto, quase na casa dos cinquenta, mas somente com algumas linhas de expressão no rosto. Possuía os olhos claros que variavam de azul a verde, dependendo do quão iluminado o ambiente estava.

- Mãe, tem ovos com bacon?

- Acabei de preparar os ovos, mas o bacon ainda está na geladeira, é só fritar. Eu preciso ir. Tenho uma audiência daqui a pouco. - respondeu ela, abotoando a parte de cima da blusa.

- Quer que eu te dê uma carona, amor? Também estou saindo. - perguntou meu pai, levantando da mesa e colocando sua caneca de café no balcão.

- Sim, obrigada. Ah Dário, não esqueça de tomar seu comprimido antes do café. - disse ela, abrindo e fechando a porta da cozinha.

Abri a geladeira e tirei a bandeja de bacon. Fui até o armário e tirei meu frasco de vitamina Targifor+C, misturei com água e fechei o armário. Imediatamente, meu celular tocou. Era Grace, minha namorada:

- Oi, o que está fazendo?

- Fritando bacon e ovos. E você?

- Estou na faculdade. Irei passar o dia por aqui.

- Nossa, que chato. Não vai dar pra sairmos á tarde?

- Infelizmente não, mas eu estava pensando em chamar meus irmãos e cunhadas para fazermos um programinha. Um filme talvez?

- Parece bom. Não vou acumular dever de casa e irei fazer tudo na escola.

- Tudo bem. Também vou adiantar algumas coisas aqui. Falo com você mais tarde.

- Tudo bem. Tchau. Te amo.

Desliguei o telefone e coloquei em cima da mesa. Subi as escadas e fui vestir meu uniforme.
Grace era um garota um pouco baixa. Tinha 18 anos e havia começado o primeiro ano de Engenharia Civil. Tinha muito cabelo e algumas pintas em seu rosto. Morava no mesmo bairro que eu. Seus irmãos, Theo e Thalia, moravam junto com ela e sua mãe, separada de seu marido. Theo tem uma namorada chamada Maya. Ela também mora na cidade, porém, um pouco mais afastada de nós. Thalia também tem uma namorada, que se chama Brenda.
Somos muito próximos e, quase em todas as noites, vamos até a casa de Grace para jogarmos em tabuleiros ou assistirmos a filmes de terror juntos. Nós temos uma ótima relação. Até temos um grupo no Whatsapp chamado "Sexteto News", onde a gente compartilhava qualquer tipo de bobagens e memes.
Saí de casa e fechei o portão de entrada. De todos nós, sou o primeiro a chegar, já que Yvonne só chega às 12:30 e eu às 11:20. Então, eu sempre fazia um lanche que contava como almoço.
A escola foi tranquila. Fiz prova, então voltei para casa mais cedo, porém decepcionado por não saber nada de Biologia e, provavelmente, ter tirado uma péssima nota. Minha mãe sempre me cobrou muito o fato de eu tentar me aperfeiçoar em coisas em que eu não sou bom. Vai eu tentar falar isso pra ela, que, com certeza, foi a nerd de sua turma.
A tarde passou rápido. Comi apenas um hambúrguer no almoço e fui deitar. E, nossa... que dor de cabeça! Achei que eram os remédios, mas aquela dor era insuportável. Dava vontade de bater a cabeça na parede, mas assim só pioraria as coisas. Fechei os olhos por alguns segundos, com os dedos perto da fronte.
Abri os olhos e vi o relógio ao lado da cabeceira. Já eram 17:30. Meu Deus, como passou rápido! Tomei banho e comi alguns nuggets de frango que coloquei no microondas.
Minha irmã estava em casa, mas trancada no quarto estudando ao som de uns cd's de meditação que ela comprou. Não sei como ela conseguia ouvir aquela voz irritante tentando lhe fazer relaxar.
Limpei a boca rápido com um lenço de cima do balcão e abri a porta. A casa de Grace só ficava a alguns minutos daqui, então, pude ir á pé.
Chegando lá, bati na porta e ela atendeu. Cumprimentei-a e lhe dei um beijo. Entrei pela sala e vi que Thalia já havia colocado a lona de Twister no chão do centro.

- Vem Dário, a gente estava esperando por você. - disse Maya, me chamando com as mãos. Arrumamos as cadeiras em círculos e começamos a jogar.

- Vamos começar com os casais. Então, Maya e Theo, vocês são os primeiros! - disse Brenda.

Eles começaram a jogar e minha dor de cabeça voltou. Não era tão forte, mas foi piorando a cada segundo. E mais forte, e mais forte e mais forte.

- Está tudo bem, amor? - perguntou Grace, colocando sua mão em cima da minha.

- Não muito, eu... - interrompi fechando os olhos e colocando a mão na testa. - estou com dor de cabeça. Só preciso ir para casa. Foi mal gente.

- Ah, qual é? Você já vai? - perguntou Thalia.

- Ele não está se sentindo bem. - respondeu Grace, enquanto me acompanhava até a porta.

- Melhoras, Dadá! - desejou Maya.

- Obrigado! - respondi enquanto fechava a porta.

- Tem certeza que não quer que eu te acompanhe até em casa?

- Não, eu vou ficar bem. Só preciso tomar meu remédio e descansar um pouco.

- Tudo bem, vê se descansa. Eu te amo! - disse ela, enquanto beijava a minha testa e pegava na minha mão.

- Eu também te amo! - respondi virando as costas, enquanto ela abria a porta e entrava para dentro.

Aquela dor era tanta que me fazia ver o mundo dançar na minha frente. Só que eu não queria preocupar ninguém, então amenizei a situação. Eu andava de olhos fechados, porque se eu abrisse eu ia ficar tonto e iria cair.
Cheguei até o portão e parei. Algo me fez parar. Talvez um sexto sentido. Olhei pra dentro e tinha alguma coisa estranha. Um frio me percorreu a espinha, como se todos os deuses estivessem soprando em minha direção. Olhava para dentro pela janela, e nada via. Mas algo estava errado. Eu sei que estava. Olhei pra minha garagem que não tinha portão e eu vi. Era ele de novo. O mesmo homem que eu havia visto no meu quarto na noite passada. Tanto líquido escorria do seu corpo que aquilo veio até a calçada da garagem em poucos segundos. Ele estava parado. Eu só via a sua silhueta, mas era possível ver seus braços estendidos e as extremidades de sua face se movendo rapidamente, como se estivesse balbuciando algo nas sombras. Ele levantou seu braço com dificuldade, como se fosse algo pesado. Ele tremia enquanto estendia-o, como se fosse a coisa mais difícil a se fazer. Sua mão, estalando, movia o dedo indicador em direção a rua, como se me indicasse uma direção. Como se ali fosse seu território. Não aguentei o medo e o pânico e comecei a correr. Cheguei a tropeçar e a cair várias vezes na rua, já que minhas pernas não paravam de tremer.
Para onde eu iria? Não queria voltar até a casa de Grace para preocupá-la ainda mais. Então, decidi ir até o tribunal onde minha mãe estava. Não era muito perto, mas também não muito longe. Quando cheguei lá, ela já estava com a chave do carro na mão, pronta para sair.

- MÃE! - gritei alto e estridente.

- Dário? O que aconteceu, filho? Alguma coisa com sua irmã? - perguntou ela, preocupada enquanto segurava meus ombros.

- Não, escute... Eu vi alguém na nossa garagem!

- O quê? Eu vou chamar a polícia! - disse ela, enquanto tirava o celular do bolso da blusa.

- Mãe, escute! Acho que não era uma pessoa. Pelo menos, não uma pessoa viva. - respondi, com a voz trêmula, quase chorando.

- O que está falando? Você está vendo muitos filmes de terror com sua namorada, não acha?

- Não... mãe... não tem nada a ver! - respondi, gaguejando.

- Entre no carro. Vou ligar para o seu pai. Ele está na casa dos seus avós. Daqui a pouco ele vai chegar. - disse ela, abrindo a porta do carro e sentando no banco do motorista.

Entrei no carro e sentei ao lado dela. Será que aquilo foi fruto da minha dor de cabeça? Ou foram os remédios? Aquilo era real? Eu achei líquido no meu quarto hoje de manhã, não foi? Ignorei meus pensamentos mais uma vez e comecei a me preparar para a briga que ia ocorrer quando chegasse em casa...

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora