Ele voltou!

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Depois daquele tenebroso acontecimento, fui para a casa de Grace junto com ela. Chegamos a tomar chá para tentar amenizar nosso terror noturno. Ela estava com tanto medo que não queria que eu saísse de perto dela, tanto que tive que dormir lá. Liguei para meus pais e avisei que não ia para casa naquela noite. Minha mãe disse que estava muito ocupada com preparativos, já que, no dia seguinte, seria a festa de formatura de Yvonne. "Que ótimo!", pensei. Se bem que nem lembrei que aquele era o dia. Estou tão longe daqui. Não fisicamente, digo mentalmente.
Mais uma festa idiota para nos apresentarmos como a família "perfeita". Estava cansado daquela palhaçada.
Eu e Grace fomos deitar logo. Ela estava muito assustada, e eu também, mas preferia não demonstrar muito para não preocupá-la ainda mais. Haveria aula no outro dia, mas estava muito cansado e pensei em não ir. Entretanto, como eu estava na casa de Grace e ela ia para a faculdade, não queria ficar lá sozinho, então, resolvi ir na força do cansaço mental.
Tinha aula de Física naquela manhã, e como eu estava totalmente sem cabeça para ouvir sobre vetores e direção, mal prestei atenção no assunto. Minha dor de cabeça começou e, já sem paciência, peguei minhas coisas e sai pela porta, sem dar nenhuma satisfação.

- Dário, para onde você vai? - gritou o Sr. Walker, me seguindo mas desistindo depois de me ver dobrar o corredor.

Continuei a andar e passei por um corredor escuro e mal frequentado da escola e, quando olhei para o lado, eu o vi novamente. O homem nas sombras. Estava parado no escuro, como sempre. Eu sabia que era ele pois via como ele se portava, com seu morto modo de ficar em pé. Ignorei de tanta raiva que estava e fui embora.
Cheguei em casa e minha mãe e irmã estavam na sala checando alguns papéis e preparativos. Minha irmã estava mais feliz do que nunca, afinal, apartir daquele dia ela não precisaria mais ouvir cobranças dos meus pais em relação às questões acadêmicas. Andei rápido para passar rapidamente por elas sem ser notado.

- Parado aí, mocinho! - falou minha mãe, se levantando do sofá e vindo em minha direção. - O Sr. Walker me ligou. Ele disse que você saiu da sala de aula sem nenhum motivo aparente. O que houve?

- Não sou muito fã de Física e me deu dor de cabeça. - respondi com ironia. - Posso ir?

- Ainda não. Não vai dar os parabéns para sua irmã? É a formatura dela hoje, esqueceu?

- Todo dia é o dia dela! - ironizei mais uma vez. - Parabéns Yvonne! Até a formatura.

- Obrigada, Dário! Vou sentir saudades de você quando eu for morar sozinha.

Ela virou o rosto e ergueu a sobrancelha, como forma pessoal de deboche. Mas retomando a sua felicidade logo depois, já que aquele era o dia mais feliz de sua vida.
Quando comecei a subir as escadas, senti mais uma vez a bendita dor de cabeça. Mas dessa vez era diferente. Parecia ser em todas as regiões do meu crânio. Como se fosse uma onda sem aparo. Terminei de subir os degraus e abri a porta do quarto. Só que... não era o meu quarto. Quero dizer, a localização era a mesma, era a mesma porta. Mas não era o meu quarto. Era outro lugar. Parecia um escritório. A escrivaninha enorme e antiga possuía vários papéis e pastas em cima. Podia-se ver uma estante enorme, cheia de livros e cadernos que mais pareciam anotações. O papel de parede era um verde escuro amarelado, como antigo.
E um homem estava nesse escritório, andando de um lado para o outro, remexendo em suas pastas e papéis. Ele usava um palitò. Sua pele era branca e seu cabelo era castanho claro. Possuía um bigode, não tão grosso e não tão fino. Até que ele parou sua caminhada repetitiva e olhou para mim lentamente. Seu rosto expressava puro pavor, como se eu fosse o intruso ali. Mas ali era o meu quarto. Bom, pelo menos era onde ele ficava.

- Quem és tu? - perguntou formalmente.

- Eu moro aqui. Esse é o meu quarto. - respondi, com a porta entreaberta.

- Não se atreva a dizer uma coisa dessas. Essa é a minha sala de leitura. - respondeu ele, olhando em volta e, em seguida, olhando para mim.

Nós paramos por um instante. Ele me encarava diretamente, como se eu fosse um livro e ele estivesse a me ler.

- Você não merecia. - ele disse, olhando para mim com indiferença.

Não entendi o que ele quis dizer, mas antes que pudesse processar essa fala, a dor de cabeça voltou e fechei a porta, ainda estando do lado de fora. Pus a mão na testa e fechei os olhos com força. Quando a dor amenizou, abri a porta novamente, e meu quarto havia "voltado", como se nunca tivesse saído dali. Entrei nele, passo por passo, devagar, como se estivesse pisando em algo falso. O que havia acabado de acontecer? Para a minha surpresa, não fiquei tão chocado com aquilo. Parecia que tudo já estava virando rotina.
Deitei na cama e fiquei a pensar enquanto olhava pra cima.
Era a formatura da minha irmã. Ela já estava praticamente livre da gaiola que era nossa casa. Os Campbell era uma das famílias mais respeitadas de Green Mountain, mas isso seria significante pra mim se realmente fossemos uma família unida e houvesse o respeito entre si.
Dormi por quase toda a tarde, e teria dormido mais se minha mãe não tivesse me acordado às pressas afirmando que já estava na hora de me arrumar. Ela já estava vestida. Usava um vestido azul escuro e salto alto da mesma cor.
Yvonne entrou no quarto em seguida:

- Mãe, me ajuda com a maquiagem. Não consigo fazer esse delineado.

Ela estava linda. Usava um vestido longo e vermelho. Só iria colocar a beca quando chegássemos na faculdade. Meu pai chegou na porta e pediu para eu me apressar logo, pois já havia ligado o carro.
Tomei banho depressa e vesti o terno. Comi um sanduíche na cozinha, com todo o cuidado do mundo para não sujar a roupa, senão minha mãe surtaria e estragaria o "dia da Yvonne". Já estava no carro quando a dor de cabeça voltou. Não era tão forte, mas não deixava de ser horrível. Fomos para a faculdade e entramos no ginásio. Lá era gigantesco e havia luzes para todo o lado. Eu sempre quis estudar ali. Sempre tive vontade de fazer psicologia. Era a minha paixão. Mesmo quase toda a família seguindo a advocacia, eu queria ser diferente. Eu sempre fui diferente.
Yvonne já estava na fileira da frente com todos os formandos. Eu e meus pais estávamos nas filas mais fundo. O discurso estava a soar quando fiquei entediado e comecei a olhar em volta. Olhei para um beco escuro ao lado do ginásio. Tinha alguém lá. Não sei como vi, pois havia muita gente no caminho. Mas eu sabia que tinha alguém ali. Era o homem das sombras. Ele estava parado, no escuro do beco. As luzes do ginásio ao lado davam destaque a figura fantasmagórica. Ele estava de pé, imóvel, na noite, no escuro. Não aguentei a curiosidade e resolvi acabar com aquilo de uma vez por todas.

- Eu estou vendo você! - gritei, me levantando rápido. Meus pais tentaram me conter pelas mãos mas não obtiveram sucesso.

Andei depressa em direção ao beco, e notei que o discurso havia parado. Estavam todos olhando para mim. Ignorei a vergonha momentânea e avancei até a entrada do beco. Mas ele havia sumido. Virei para o ginásio e estavam todos olhando para mim. Minhas pernas começaram a tremer. Eu estava tendo uma crise de pânico, como não tinha há muito tempo. Meu ar falhou e comecei a tossir e gritar (já que esse era meu jeito de tentar recuperar o ar). Meus pais me levaram para o carro, onde sempre havia uma bombinha de asma e deram meu tranquilizante. Dormi ali mesmo, no banco traseiro, enquanto o que quer que estivesse naquele beco, já havia voltado para a outra dimensão.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora