Chuva de sangue

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  Cheguei da escola, e passei na casa de Grace. Ela estava radiante, pois havia terminado uma maquete super complicada. Ela também me perguntou o porquê de não ter ligado pra ela recentemente. Expliquei que estava com a cabeça muito cheia e não tive tempo. Ela aceitou minhas desculpas e compreendeu a situação. Me despedi dela e fui para casa.
  Quando entrei, vi Yvonne sentada no sofá. Ela estava quieta e vi que algo estava errado.

  - O que aconteceu? - perguntei, jogando a bolsa na poltrona e sentando no sofá.

  - Eu vou embora, Dário, em algumas semanas…

  Ela baixou a cabeça e vi passar a mão no rosto. Minha irmã estava chorando. Pus a mão sobre a dela e comecei a sentir algo. Uma falta de ar tomou conta de meus pulmões e um vazio assolou meu coração. Eu pus a mão no peito e respirei forte, difícil. Ela me abraçou e disse:

- Eu também tô triste. Mas você vai ficar bem. ErinsWood fica aqui do lado e meu apartamento fica perto da lanchonete central. Você pode ir me visitar pra gente sair de vez em quando.

  Me acalmei e respirei fundo.

- Estou feliz por você. Você vai se dar bem lá. Quem sabe eu não vou pra lá quando começar a faculdade?

- É assim que se fala. - respondeu ela, levantando do sofá e calçando seus chinelos.

  Antes de subir pro quarto, virou e disse:

- Já chega de tristeza. Quero fazer meu dia valer a pena. Vamos pro shopping? - sugeriu ela.

- Tudo bem. Só preciso me trocar. - respondi me levantando, e subindo junto com ela.

  Saímos de casa e fomos para o Central Shopping. Fomos ao cinema e passamos a tarde vendo filmes de ação. Saímos ao anoitecer e passamos numa lanchonete. Conversamos sobre lembranças de quando éramos crianças e, por um momento, minha mente teve paz. Eu pude finalmente respirar. Eu não estava tentando ser o namorado perfeito, o aluno perfeito, ou o filho perfeito. Naquela noite, eu era apenas o Dário Campbell, tendo uma conversa normal com Yvonne Campbell. Entretanto, mais tarde, naquela noite, eu iria encarar a pior experiência de toda a minha vida.
  Saímos da lanchonete às 19:30. Chegamos em casa e vimos nossos pais apreensivos e nervosos. 

  - O que houve? - perguntou Yvonne.
  Meu pai estava mais apressado do que nunca. Andando de lá para cá. 

- A avó de vocês sofreu um acidente. Parece que ela caiu da escada. - respondeu ele, com lágrimas nos olhos.

  - Meu Deus! Ela está bem? - perguntei.

  - Ela está estável. Mas não sei direito ainda. - respondeu meu pai, tomando um de seus calmantes.

  - Estamos indo para o hospital agora. - disse minha mãe, descendo as escadas com uma bolsa na mão.

  - Eu vou também. O vovô precisa de alguém para acalmá-lo. - sugeriu Yvonne.

  - Tudo bem, então. Filho, você vai ficar sozinho em casa? - perguntou minha mãe.

  Hesitei por um momento. Porém, ao pensar na situação da vovó Judy, percebi que ela precisava de atenção, mais do que eu. 

  - Tudo bem. Eu vou ficar bem. - respondi, sorrindo um pouco.

  Todos saíram. Fiquei sentado em um dos degraus da escada um pouco, pensando em tudo. Pensei na possibilidade de morte da minha avó. Mas ela era forte, iria resistir. Subi até o meu quarto, mas comecei a sentir uma energia pesada lá, como se algo estivesse errado. Então, fui até o banheiro escovar os dentes. Mas ao tocar na porta, vi um vulto branco passar atrás de mim, uma forma feminina. Entrei no banheiro e abri o armário. Olhei pela janela, e vi que tinha começado a chover. "Ótimo", pensei. Terminei minha higiene bucal, saí do banheiro e comecei a andar pelo corredor, em direção ao quarto dos meus pais.
  Escutei algo cair no meu quarto. Fui até lá e vi meu guarda roupa aberto. Um dos meus cintos estava no chão. "Acho que a queda dele empurrou a porta", pensei. Coloquei de volta e fechei a porta. Quase perto da entrada do quarto novamente, escutei o rangido da porta abrindo lentamente.
Um frio percorreu pelo meu corpo e comecei a ter uma crise de pânico. Mas dessa vez foi diferente, eu não conseguia me mover. Comecei a tentar gritar, mas sem sucesso.
  Me virei devagar e olhei para o dito guarda roupa. O quarto estava fedendo a carne estragada. O silêncio era pior que tudo. A única coisa que o quebrava era o barulho da chuva lá fora, o que deixava tudo mais assustador. Me fazia querer morrer ali mesmo. Do nada, comecei a ouvir um som de galhos a quebrar. Mas logo percebi que não eram galhos. Eram ossos.
  Notei uma mão acinzentada saindo da lateral do móvel e pondo-se na base da porta. Devagar, sorrateiramente. Minhas pernas se desgrudaram do chão e consegui correr. Pouco, mas consegui. Eu precisava sair daquela casa, o mais rápido possível. Eu não era mais bem vindo ali, não há muito tempo. Desci as escadas, tropeçando em quase todos os degraus.
  Quase passando pela porta que levava ao porão e a porta se abriu numa velocidade que não deu pra raciocinar. Uma pessoa se atirou em cima de mim, e me derrubou no chão. Era um homem. O mesmo homem que acho que vi no meu quarto naquele dia, quando meu quarto virou um escritório antigo, sei lá. Mas ele estava diferente. Ele estava com um buraco na cabeça e seus olhos eram acinzentados. Me senti encarado a própria morte. Ele estava com sangue em todo o rosto e vestia uma bata vermelha.  Comecei a gritar e a me arrastar pelo chão, já que ele segurava a minha perna e não parava de gemer alto. Consegui me soltar e saí correndo. Eu estava chorando muito e só queria que alguém me tirasse dali. Corri pelo corredor e vi duas pessoas. Eram duas mulheres. Estavam de mãos dadas e vinham em minha direção. Tinham um sorriso malicioso, e seus rostos expressavam pura ganância. Usavam vestidos antiquados e cinzas. Recuei, voltando atrás nos meus passos. Porém, uma delas ergueu a mão na minha direção e senti minha carne arder por dentro. Comecei a engasgar como se estivesse me afogando. Estava me sufocando. Elas tinham poderes. Foi quando eu entendi tudo. Aquelas eram Marian e Lauren Devile. E o homem que saiu do porão era Ronald Devile. Me rendi a sua maldita telecinese, já que resistir era inútil.
  Eu estava pairando no ar, quando uma delas disse:

  "Aceite seu destino! Se fugir dele, não fugirá de você mesmo!"

  Eu estava quase morrendo sufocado, levitando com os olhos revirados e a boca aberta. Quando uma frase veio a minha mente, e não tinha porquê não dizê-la.

- Nunca me terá. Nunca farei parte do vazio.

  Quando disse isso, caí no chão e vi que elas tinham sumido. Mas a voz de uma delas ecoou pela casa.

  "Então, veja você mesmo".

  Minha dor de cabeça foi atiçada e comecei a me contorcer de tanta agonia. Abri os olhos e vi o auge do horror daquela noite: todas as paredes, sem exagero, haviam se transformado em corpos empilhados. Eram homens e mulheres, de todas as idades, todos mortos. O chão adquiriu tom avermelhado, como se tivesse passado uma camada de tinta vermelha. Comecei a vomitar e a gritar de medo.
  Levantei - ainda não sei como tive coragem - e comecei a correr até a porta. Eu precisava de coragem pra sobreviver. Precisava me esforçar para viver. Pois, naquele momento, sair daquela casa era minha maior meta.
  Cheguei na porta. Estava trancada. Criei força e comecei a dar chutes nela. Olhei pela janela e eu o vi. Era ele. O homem. De novo. Ele estava lá fora na chuva. A rua estava escura e, com a água da chuva na janela, não dava pra ver o rosto dele, de novo. 

  - QUEM É VOCÊ? - gritei.

  Consegui abrir a porta, mas ao sair ele havia sumido. Consegui chegar ao gramado e caì ajoelhado no chão. Eu havia conseguido. Estava fora do inferno. A chuva banhava meu rosto. Uma sensação de vitória. Até olhar para minhas mãos e perceber que aquilo não era água. Minhas mãos estavam sujas de sangue. Olhei em volta e vi que tudo estava encharcado de sangue. Gritei alto. O mais alto grito que já soltei. Fiquei tonto e cai deitado na grama, totalmente inconsciente.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora