No vazio

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  Esse é o último capítulo da minha história, e talvez o mais triste para você, caro leitor. 
  Nosso dia já começou em estado de agitação. Minha mãe começou a passar mal logo de manhã e não aguentou tanto incômodo. Parece que os calmantes que ela estava tomando começaram a ter efeito reverso e passaram a fazer mal. Ela também tinha voltado a fumar, então isso também contribuía. Levamos ela até o hospital de ErinsWood e Yvonne ficou encarregada de tomar conta dela, para evitar que ela se exaltasse e tentasse sair da cama.
  Fiquei no corredor, sentado em um banco perto do quarto, quando Grace ligou. Não tinha ligado para ela desde que chegamos na cidade. 

  - Oi amor. Aconteceu alguma coisa? Como você está? - perguntou ela, com voz de cansada, provavelmente por eu tê-la acordado.

  - Estou bem, amor. Só minha mãe que está no hospital mas ela vai ficar bem. Os calmantes estão fazendo mal a ela.

  - Quando você volta para casa?

  - Não sei ainda, amor. Preciso mesmo ficar longe daquela casa, mas talvez meu problema nem seja a casa.

  - Precisa voltar para casa. Queremos que você volte! - disse ela, com a voz um pouco diferente do normal.

  Estranhei e fiquei confuso. De quem ela estava falando? 

 - Como assim? Quem quer que eu volte?

 - Precisamos de você, Dário! Nunca irá escapar de seu destino! - disseram três vozes, todas falando ao mesmo tempo e eu já sabia de quem se tratava.

  Eram eles. A família Devile. Desliguei o telefone ao perceber que não era Grace que estava falando.

  - Dário! 

  Era minha irmã vindo em minha direção, saindo  do quarto da minha mãe. 

  - Preciso que você fique com a mamãe. Tenho que ir comprar algumas coisas na lanchonete. Eu já volto! - disse ela, virando no fim do corredor.

  Voltei para o quarto da minha mãe e ela já estava acordada. Porém, quase sem forças e sentada, encostada no travesseiro. Sentei na cadeira ao lado, antes ocupada por Yvonne. 

  - Ah, meu filho! Desculpe por causar toda essa confusão. Sei que não merecem ficar nesse hospital sentindo esse cheiro de gente doente.      - disse ela, rindo mas com fragilidade em seu olhar.

  - Isso não é nada. Você já fez muito isso pela gente. Estamos apenas retribuindo. - respondi, sorrindo também.

  - Venha. Sente aqui. - deu dois tapinhas na cama.

  Sentei na cama e ela disse: 

  - Quero pedir desculpas pelo que fizemos. Eu e seu pai. Tomamos uma medida impulsiva, e agora eu sei disso. Sei que se ele estivesse aqui, ele também teria se arrependido. Na verdade, se arrependemos desde que vimos você gritar enquanto saìamos do quarto.

  Fiquei calado por um tempo, e depois resolvi falar: 

  - Sei que está arrependida, mãe. Mas eu sofri muito naquele lugar. Lá eu passei por coisas que não imaginava passar nem em meus piores pesadelos. Quero perdoar você... vocês. Mas vai levar tempo para isso. 

  Ela se fechou e seu sorriso frágil se transformou em uma feição séria e brava. 

  - Puxa, Dário. Seu pai teve que morrer para você somente então pensar em nos perdoar? 

  - Mãe, eu não estou dizendo que aquilo foi imperdoável. Porque, afinal, vocês são meus pais. Mas vai levar tempo. Os traumas que eu já passei não são uma coisa volúvel. Não vou simplesmente esquecer que vocês me deixaram sem notícias por meses e meses. Entenda meu lado, por favor!

  - Maldita hora que sua irmã e aquela sua namoradinha fútil foram te tirar daquele lugar. Para mim, você poderia apodrecer lá, que eu não moveria um dedo para te tirar. Desde que seu pai morreu, eu não tiro da minha cabeça que foi você o responsável pela morte dele. 

  - Como você pode dizer uma coisa dessa? Você me conhece! Eu sou o seu filho! - não aguentei e comecei a chorar. 

  - Não, você não é meu filho. Você não é há muito tempo. Você não é o mesmo que eu criei debaixo do meu teto. Depois de um tempo, eu senti como se existissem dois Dário's em casa, e que eu nunca saberia qual iria descer para tomar café. Para mim, você já está morto! Não importa o que aconteça comigo ou com você. Minha vida praticamente já acabou.

  Aquelas palavras que saíram da boca da minha mãe me machucaram mais do que os choques que eu levava no Nova Alvorada. Eram como espadas entrando no meu coração. Não aguentei e saí do quarto. Comecei a ficar enjoado, mas não conseguia vomitar. Corri para fora e fiquei sem fôlego. Começava a hiperventilar e a gritar sem forças. Eu sei que ela estava dopada de remédios, mas aquilo não era motivo para despejar tanta carga emocional sobre mim.

  "PARA MIM, VOCÊ ESTÁ MORTO!"

  Aquelas palavras ecoavam na minha mente como as vozes naquele hospital. Mas eu já sabia o que fazer. Já tinha a solução. Uma solução eficaz e sem volta. 
  Fui até uma das esquinas do hospital e consegui pegar uma carona até Green Mountain. Chegando em frente a casa, percebi que era mesmo o que eu queria. Mas ao olhar para o lado, em direção ao fim da rua, vi a casa de Grace. Bati em sua porta, e ao abrir, vi que ela estava perfeitamente bem. Veio correndo me abraçar enquanto sorria e dizia que sentiu muito a minha falta. Mas ela estava bem sem mim. Era isso que importava.
  Voltei até minha casa e entrei. Estava tudo escuro. Um ar sombrio, e eu não me importava. Até me familiarizei pela escuridão que não era muito diferente da que residia dentro de mim. E… agora me faltou palavras. Não sei descrever o que senti naquele momento específico. Eu acho que o mais adequado de dizer é que a única coisa que sentia, era o vazio. Ele já havia me pegado. Aquele vazio estava comigo desde a primeira vez que "o homem" havia aparecido no meu quarto. Nada fazia mais sentido. Meu pai? Morto. Minha mãe? Totalmente perturbada pela morte do cônjuge. E minha irmã? Totalmente responsável pelo que sobrou da tradicional e respeitável família Campbell. Eu era apenas mais um empecilho. Desde que nasci, meu destino já estava traçado. O destino de fazer parte do vazio. Era isso que queriam dizer. E acho que sempre soube, mesmo que inconscientemente. 
  Deixei meus pensamentos de lado, já que não adiantava mais ter aquele tipo de coisa na cabeça. Fui até o banheiro e enchi a banheira de água. Abri o armário embaixo da pia e peguei uma caixa de giletes que eram do meu pai. Tirei algumas e entrei na banheira.
  Fiquei alguns minutos sentado, sem expressão, calado, olhando para o nada. Acho que, no fundo, eu ainda tinha uma única gota de esperança de alguém chegar e me impedir. Mas ninguém chegou. Ninguém nunca chegou. Meu coração bateu forte. Eu sabia que aquilo não tinha mais volta, e aquilo era o que me atraía. Respirei fundo, enquanto lágrimas escorriam dos meus olhos, e abracei meu destino cruel. 
  Posicionei as lâminas nas minhas pernas e puxei com força e pressão. Comecei a gritar ao ver os cortes profundos e o sangue a jorrar. Peguei as lâminas mais uma vez e, dessa vez, cortei meus braços, que ardiam mais que madeira em brasa. Depois com elas, cortei meus pulsos que pareciam uma torneira de sangue, de tanto fluxo que saia de meus membros superiores. E por último, cortei meu rosto e pescoço, que me fez ficar totalmente grogue por um segundo, e, em seguida, cair deitado sob a água. A última coisa que senti foi minha carne queimar e começar a engasgar com a água, agora vermelha pelo sangue, até meu último traço de vida sair totalmente do meu corpo.

Cortes na AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora