O sol raiava mais uma vez entre as montanhas que cercavam o Sanatório Nova Alvorada. A luz entrava aos poucos pela janela quando acordei. "O homem" tinha vindo na noite passada e eu não tinha mais nenhuma aversão a ele. Ele nunca me machucou, e era a única coisa ali que me recordava minha vida antiga - digo assim porque já se passaram tantos meses que nem tenho mais noção de tempo.
Eu perdi muito peso nesse período quase eterno. Me alimentava apenas três vezes por dia. Isso pode parecer suficiente em questões de saúde, mas as porções eram minúsculas e não davam para alimentar nem um rato por completo.
Fui para o pátio e sentei em uma cadeira que ficava sempre pertos das plantas. Aquele era meu lugar, meu refúgio. O barulho dos pássaros e o som do vento nas folhas me relaxava.- É maravilhoso, não é?
Fui interrompido por uma voz rouca, porém doce e carinhosa em suas palavras. Era uma senhora, um pouco baixinha, de cabelos curtos e brancos. Sua pele era enrugada mas bem cuidada. Até fiquei curioso sobre como sua pele ser tão saudável em meio aquele lugar horrível.
- O quê? - perguntei, sorrindo levemente.
Ela puxou um banquinho perto dela e sentou-se ao meu lado.
- O vento em seu rosto e a sensação de liberdade que os pássaros passam. - ela respondeu, sorrindo e olhando para cima.
- Tenho inveja deles. Podem ir onde quiserem e têm total liberdade para isso. - falei, olhando para a senhorinha.
- Mas eles demoram até conseguir voar. Como nós, eles são cuidados pelos pais até o momento certo em que eles deixam os filhotes seguirem suas vidas.
Baixei a cabeça e lembrei de meus pais. Eles não eram daquele jeito. Eles não me ensinaram a voar. Eles simplesmente me empurraram do meu ninho e esperasse que eu abrisse minhas asas e começasse a agir como um adulto. Senti saudades deles mas, apesar de tudo, senti ódio por terem feito o que fizeram. E, pelo amor de Deus, onde estava Yvonne? O que houve com minha irmã? Uma hora daquelas já devia estar morando em seu aconchego, em seu apartamento em ErinsWood.
- O que aconteceu para estar aqui, meu jovem? Um rapaz como você deveria estar no auge da vida adolescente. - perguntou ela, juntando as mãos sobre o colo.
- O único motivo de estar aqui é ter falado a verdade... por ter sido eu mesmo. Parece que até o tempo está contra mim e não passa nesse lugar. Mas e você? O que fez para chegar aqui? - indaguei.
Ela baixou a cabeça, suspirou, e depois olhou para mim novamente.
- Subestimei a mim mesma, e a todos ao meu redor. Fiz coisas horríveis nesse mundo de meu Deus. Coisas que que ainda vejo quando fecho os olhos antes de dormir. Mas isso não vem ao caso. Vou poupá-lo de minha vida desgraçada pela minha própria pessoa.
- Esse é o inferno! - exclamei olhando em volta.
- Não. - interrompeu. - É o vestíbulo do inferno!
Não entendi o que quis dizer, até porque nunca tinha ouvido falar em vestíbulo infernal.
A doce senhora começou a ficar mais pálida que o normal e chamou uma das enfermeiras que estava andando pelo pátio para levá-la para seu quarto. Me despedi dela e passei mais um tempo sentado, pensativo.
O resto do dia passou igual aos outros. Anoiteceu e fomos assistir o filme que víamos todas as noites.
Eu estava sentado, quase adormecendo na cadeira, quando senti muito tontura e azia. Devia ter sido o suco de laranja que eu havia tomado no jantar. Pedi permissão a Sra Sanders e corri até o banheiro. Me ajoelhei no chão e comecei a vomitar. Depois de terminar e lavar as mãos, ouvi passos no corredor. Mas eram passos rápidos de sapatos de mulher. Dava pra saber por conta do barulho mais agudo. Fui até o fim do corredor e não acreditei no que vi: era Yvonne! De carne e osso! Era ela, e não estava sozinha. Grace estava com ela! As duas estavam lindas. Cheguei a chorar de emoção ao vê-las. Grace correu aos meus braços e me abraçou loucamente. Já Yvonne me abraçou e me deu vários beijos na bochecha.- Como vocês... como estão aqui? - perguntei, confuso como sempre.
- Vínhamos até a floresta quase toda noite procurando alguma porta secreta ou algo do tipo. Só queríamos te tirar daqui! - disse Grace, eufórica, pulando nos meus braços novamente.
- Gente, precisamos ir. Se alguém aparecer, vamos todos presos! - disse Yvonne, enquanto olhava para os lados.
Começamos a correr por entre os corredores da instituição. Grace ia agarrada em meu braço. Não queria me perder de novo. Já Yvonne carregava a lanterna a frente de nós. Queria tanto falar com ela, mas não naquele momento. Naquele instante, eu só queria sair daquele inferno gratuito.
Ao dobrarmos um corredor, vimos a Sra Sanders acompanhada de algumas enfermeiras e três seguranças. Entramos em uma porta verde que parecia arrombada pelas garotas e descemos uma escada. Ao chegarmos no porão, entramos por outra porta que dava em um túnel subterrâneo. Corremos bastante e chegamos até uma escada de metal que dava em uma portinha de madeira, acima de nós. Saímos na floresta e fechamos a pequena porta. Ouvimos passos pesados correndo em direção a nós no andar de baixo. Começamos a correr em uma direção certa, conforme eu seguia as meninas. Entramos no carro, e Yvonne pisou fundo no acelerador.
Eu estava livre. Estava finalmente livre. Respirei fundo junto com Grace, e ela me abraçou de novo. Estava indo pra casa finalmente. Pelo menos, era melhor que aquele tormento. Yvonne dirigia rápido, apreensiva.- Por que, Yvonne? - perguntei, olhando para ela através do espelho do carro.
- Sabia que iria tocar nesse assunto, Dário. E a resposta é simples. Eu não te visitei porque eles nunca deixaram. Eles diziam que ia tirar o seu foco e que você estava melhorando de acordo com as enfermeiras. Eu e a Grace passamos quase um mês bolando um plano para te tirar de lá. Acredite... o que eu mais queria era te tirar daquele buraco!- ela explicou, começando a chorar no final da justificativa.
- Você é forte! Você aguentou aquilo tudo. Você não sabe o quando foi difícil para mim também. Quando Yvonne me contou o que tinha acontecido minha vida parou. Era como se eu tivesse parado no tempo. Mas agora você está aqui e é isso que importa! - disse Grace, pondo a cabeça em meu ombro.
- Vocês não sabem o quando eu senti saudades. Aquele lugar me testou tanto que eu nem sabia onde buscar esperança. Mas era só lembrar de vocês e eu aguentava qualquer coisa que me acontecesse. - respondi, com lágrimas nos olhos.
Conversamos a viagem inteira. Ao chegarmos na cidade, fui para a casa de Grace, onde haviam deixado minhas roupas limpas. Yvonne foi para casa, para nossos pais não suspeitarem de nada.
Depois de limpo, vestido e satisfeito, fui para casa. Antes de entrar, vi que estavam todos na cozinha. "É o momento perfeito para uma entrada triunfal", pensei. Toquei a campainha, e minha mãe atendeu. Ver a cara de pavor e tristeza dela foi o melhor de tudo. Ela pareceu tonta e caiu no chão. Meu pai e Yvonne chegaram na sala. Meu pai olhava para mim com um olhar num misto de raiva e angústia. Me agachei e olhei fixamente para a minha mãe, que estava zonza mas conseguia olhar para mim de volta. Até eu dizer em tom sarcástico:- Surpresa, mamãezinha! Sei que pensou que tinha se livrado de mim!
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Cortes na Alma
HorrorDário é um jovem que sofre de ansiedade e ataques de pânico. Mas tudo só piora quando ele começa a ser assombrado por um espírito coberto de sangue...